quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O espantalho, conto do amigo, escritor e folclorista Valter Cassalho


Como conheci Valter Cassalho

Quando fui para Joanópolis pela primeira vez, já conhecia o livro Histórias do Arco da Velha, de autoria de Valter Cassalho e contava alguns dos causos que escritos ali. Por isso mesmo, mal cheguei na cidade e já fui perguntando do Valter para todo mundo. Eu queria muito conhecer de perto o autor de algumas das histórias que eu contava.
 Era dia de São João e a cidade toda estava festejando porque também é o aniversário da Capital do Lobisomem.  Para aqueles que ainda não sabem, Joanópolis foi por muito tempo conhecida como a Joia da Mantiqueira e depois recebeu a alcunha de Capital do Lobisomem. E assim também é conhecida até hoje.
Naquela noite de festejos não foi fácil achar o homem não. Quando falavam que o Valter estava num lugar, eu corria até lá e ele já tinha saído. Parecia caçada de gato e rato. Quando por fim, encontrei com ele, me deparei com uma pessoa muito amável, simpática, simples e extremamente solícito. Conversamos, ele me apresentou a Casa do Artesão, me presenteou com um saci feito pelo André e até anunciou no megafone da festa que, naquela noite, tinha uma contadora de histórias de São Paulo na cidade. Valter ficou satisfeito e alegre ao saber que eu contava seus causos. E eu fiquei mais ainda por ter recebido tal confiança. Depois de um tempo, ele generosamente me apresentou à professora e grande folclorista Neide Rodrigues e também me indicou para um trabalho com ela. Fui com Giba Santana conhecer a professora Neide que nos acolheu, muito hospitaleira, em seu delicioso sítio. Ensaiamos algumas horas com os músicos que compõem a orquestra de violeiros. Lembro com detalhes de como aconteceu tudo numa salinha da Ong Ora Viva São Gonçalo. Felicidade não cabia e eis que chegou o dia de contar os causos no Museu da Língua Portuguesa, num sábado de Virada Cultural em São Paulo. Neide Rodrigues e sua orquestra linda de violeiros foram costurando com as notas musicais as histórias, enquanto o Giba Santana pontuava sutilezas com sua mesa de objetos sonoros.
De lá para cá, eu e Valter tentamos também outros alinhavos para que eu fosse até Joanópolis contar histórias. Mas, isso ainda não aconteceu. Eu sinto que vai acontecer em breve. Oba!

Sou muito grata por ter conhecido a linda e encantadora Joanópolis, que é realmente, uma joia encrustada na Serra da Mantiqueira. Sou igualmente grata e me sinto honrada, por ter conhecido pessoas tão importantes para a cultura popular e que têm o compromisso com a sua valorização e difusão.

Alguns dias antes do último Natal, recebi um presente incrível do Valter Cassalho a dedicatória de seu causo O espantalho. Felicidade e alegria não couberam em mim.

Deixo aqui registrado este belo e interessantíssimo causo e logo depois segue o link para o blog do Valter onde você encontrará tantos outros causos e escritos interessantes e também divertidos.

O ESPANTALHO
À amiga Rosita Flores 

Hoje não muito usado em nossas plantações, mas num tempo antigo muito presente na roça, os espantalhos espalhavam-se por ai.  E num desses fundos de roça que ouvi o presente “causo”. 
Contam que por um desses cafundós morava um garboso rapaz, descendente dos antigos coronéis e pagava pose de sinhozinho. Filho de família antiga, gente de posses, o rapaz de nome Bento vivia de terninho branco engomado, bonito, simpático e o chamavam de Bentinho.  Morador da casa do grande de um bairro distante era desejado pelas moças casadoiras; porém naquele tempo, essas coisas de amor e paixão, de nada tinham valor, quem decidia com que se casava eram os pais. E assim Bentinho foi prometido em noivado a Jurema, uma bela e educada moça de dezesseis anos; combinado entre as famílias que ambos após o casamento morariam na cidade. 
O tal Bentinho desperta ciúmes dos rapazes e suspiros das moças que por ali passavam ou trabalhavam na fazenda. Eis que poucos dias antes do carnaval, realizou-se as núpcias do casal, com grande festa e alegrias dos pais, e muito ciúmes das mocinhas, em especial de Maria Rita, a bela morena de vinte anos e ainda solteira, que vivia a suspirar pelos cantos da casa e imaginar seu amor com Bentinho. Maria Rita nutria pelo belo moço um amor platônico e triste, vivia a espiar o moço de longe, seguindo-o mesmo em seus banhos de rio. Neste amor impossível recusou casamentos e noivados.
 Bem, mas voltemos a Bentinho. Passado o Carnaval veio a Quaresma, e os moços da fazenda, arteiros como eles só, resolveram dar uma peça no sinhozinho. Chegando a semana santa, roubaram alguma roupas do varal da casa grande e na quinta-feira santa, estavam todos num grande paiol fazendo os tradicionais judas. Fizeram o judas de uma fofoqueira da cidade nhá Bertina, do farmacêutico Leôncio Zeca, que era chato como ele só, do coronel e famoso mão-de-vaca Tico Preto e do engomadinho Bentinho, que ficou na estica de terno branco de linho, chapéu e tudo mais!  Ora,  Maria Rita era filha da nhá Tuca, lavadeira da Casa Grande e comentou o ocorrido do sumiço das roupas do rapaz. Desconfiada Maria Rita cismou algo, pois bem conhecia a esperteza dos meninos da fazenda nesta época de judas. Sorrateiramente na calada da noite  foi até o paiol e logo deu de cara como o judas de Bentinho, e mesmo como judas, bem atochado de capim ela ainda o achou bonito. Neste amor doentio, Maria Rita cheirou o  judas de Bentinho, abraçou o boneco e ficou a imaginar seu grande amor em seus braços.  Como era bem eleve, colocou o judas nas costas e levou na sua casa. Que coisa feia, pensou ela, roubando algo na Sexta-Feira Maior e tendo pensamentos tão mundanos num dia grande desses! Chegou em casa e colocou o boneco em sua cama e dormiu com ele ao seu lado.
Amanheceu o sábado de Aleluia e os bonecos foram para praça, onde foram surrados, enforcados e antes de serem queimados como manda a tradição, foi lido o testamento de Judas, com grande algazarra e risadas dos presentes. No entanto, os rapazes notaram a falta do judas de Bentinho, mas dado tanto farra e tantos judas deixaram de lado o furto do dia anterior.
Após alguns dias e passado o dia de judas, o jeito era dar um destino ao boneco antes que sua mãe se zangasse, a solução foi levar o judas para a roça e finca-lo na terra, ao menos serviria para alguma coisa e não teria o fim do fogo como os outros bonecos.  Apesar de muito repreendia por sua mãe, Maria Rita recusou-se a queimar o judas e todo dia que iam trabalhar na Casa Grande ela avistava o espantalho novo da plantação.
Assim passaram alguns dias e numa noites dessas de lua cheia, houve um baile no terreiro da Casa Grande, festança das boas, sanfoneiro e todo mundo a dançar. E não é que numa hora dessas chega um belo rapaz de terninho branco, chapéu e todo educado, com um sorriso malicioso e hipnotizante. Moço cheiroso, dançador e muito parecido com Bentinho, levando muitos a crer que era algum parente. Sempre desconversando quanto a parentela, só sabiam que era um “moço da cidade”.
Indo embora a certa hora, ainda cedo, mas num bom horário para donzelas, Maria Rita antes de entrar em sua casinha lá no meio do morro, percebeu que seu belo espantalho não estava mais lá, talvez tivesse caído num pé de vento que dera há algumas horas, ou que os moços o pegaram de volta para suas estrepolias.
Dormindo Maria Rita acordou assustada como a ouvir passos ao redor da casa, um barulho de palha a esfregar pela parede, levantou acendeu o lampião e nada viu, enfim adormeceu e sonhou com o belo rapaz do baile. Outro dia cedo ao olhar para plantação, lá estava ele, o espantalho, arrumadinho, bonito, bem alinhado.  Outra noite veio, e o tinhoso a solta, como a tentar as pessoas, Maria Rita deu de chofre com o rapaz na beira da sua casa, quis gritar mas não conseguiu, ficou petrificada pelo susto, e antes que tomasse qualquer atitude foi profundamente beijada pelo rapaz que vira no baile na Casa Grande. Assim sucederam-se esses encontros misteriosos, com o inebriante perfume e o olhar penetrador do rapaz, tão parecido e cheiroso como o grande amor de sua vida, o Bentinho, que agora morava distante dali.
Passaram-se os meses e lá estava o tal espantalho, fincado na terra e que levantava certa curiosidade, pois estava sempre limpo, impecável, conservado, nem o sol e chuva parecia corroer suas roupas ou o enchimento do seu corpo. E foi num desses comentários com as lavadeiras na beira do rio que a velha nhá Sunta, antiga parteira do local, comentou que isso era mau sinal. Que não era coisa que se prestasse fazer um judas e não queimá-lo, ainda mais na Sexta-feira Santa, dia muito grande; pior ainda, usar um judas amaldiçoado como espantalho, que isso poderia provocar o Tinhoso a fazer suas artes por ai.  Cruz Credo !! Todos se benzeram após a fala de nhá Sunta.
Assim correram mais umas semanas, e os encontros furtivos com o “moço da cidade” continuaram, mas agora já dava para perceber algo ! A barriga de Maria Rita estava a crescer e precisou contar a sua mãe, que havia perdido sua virgindade, desonrada a família, com um moço que sequer sabia o nome.  Mãe e filha tentaram esconder por uns meses; proibindo Maria Rita de sair de casa e muitos perceberam a ausência da bela morena, nos bailes, festas e rezas. Assim correu o ano, novas festas, o carnaval e a quaresma de novo e lá estava o espantalho de Bentinho, limpo, alinhado, cheiroso no meio da plantação. Plantaram o milho, o feijão, a abóbora,  que brotaram, cresceram, secaram e o espantalho lá, tão novo como no primeiro dia.
Finda a Quaresma, chegou novamente a semana santa, a barriga de Maria Rita enorme, e o “moço da cidade” perambulando nos bailes do bairro, galanteando as moças, sempre de terno de linho branco, chapéu na cabeça e cheiroso, que aparecia e sumia como por encanto, deixando moças suspirando por aí.  Maria Rita as vezes ainda recebia a visita do seu falso Bentinho, de poucas palavras e muitas malícias.
Enfim chegou a sexta-feira santa, e os moços resolveram fazer novos judas, e foi numa dessas que alguém teve a ideia de pegar o espantalho na velha plantação de milho e devolve-lo a condição de judas e finalmente dar cabo no dito cujo. E lá foram dois rapazes na plantação, na sexta-feira santa, e tentaram, tentaram e tentaram e não conseguiram mover o espantalho fincado na terra. Chamaram mais dois fortes rapazes e nada, resolveram cavar ao redor, e depois de muito esforço conseguiram derrubar o boneco que passou a exalar um cheiro fétido de coisa podre e enxofre. Ficaram meio assustados com isso e procuraram os conselhos de nhá Sunta, que fez uma oração forte sobre o boneco e despejou pinga com arruda sobre o mesmo e atou as mãos do boneco com folha de palma benta.  Levaram então para a cidade e penduraram no poste em frente a Igreja do Arcanjo Miguel.
Desde esse momento Maria Rita entrou em grande tribulação, começaram as dores do parto que vararam a noite e duas parteiras presentes nada resolviam. Amanheceu o sábado de Aleluia e Maria Rita estava um tanto mais calma com poucas contrações. As dez horas na praça da cidade começaram a leitura dos testamentos dos judas, e a criançada começou a descer o pau nos vários bonecos, em especial no espantalho que de uma hora para outra ficou amarelo e envelhecido com forte cheiro de coisa velha. Maria Rita entrou outra vez nas contrações do parto, rolava de dores, gritava, suplicava e nada da criança nascer. Começaram várias orações no quarto; enquanto isso na cidade pauladas no judas e enfim atearam fogo, o boneco estrebuchou na forca, incendiou, balançou, girou e booom !!! Deu um grande estouro e todos ouviram uma gargalhada.  Arrepiados todos se benzeram com o sinal da cruz, mas só restou cinzas do antigo boneco de Bentinho.

Nesta mesma hora Maria Rita deu a luz uma criança branca como um sabugo de milho, os cabelos espetados e avermelhados como de uma espiga, olhos grandes e fogosos, que logo foi entregue a avó, pois Maria Rita estava desfalecida pelo difícil parto.  Dias depois refeita e com sua criança nos braços, Maria Rita soube do fim dado ao seu espantalho. Coincidência ou não, o tal “moço da cidade” sumiu das festas, dos bailes e do bairro.
Maria Rita, também sumiu da vida social, ficando somente com seu filho de cabelos vermelhos e branquelo como sabugo, apenas ouvindo nas noites enluaradas o barulho do raspar de palha de milho nas paredes de sua casa. 
Assim foi....
Valter Cassalho - Dezembro/2013

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