quarta-feira, 27 de março de 2013

Interfaces entre literatura e empatia



Giovanna Artigiani
            O ser humano é fascinado por histórias – e quem não queria ter uma Sherazade¹ no bolso? A literatura tem o poder de desfocar o mundo do leitor do centro da sua vivência pessoal e mergulhá-lo numa outra realidade completa, na qual o sentimento é o de realmente experimentar o que é estar na pele de outra pessoa, em seu universo complexo, sem limite de tempo e espaço, sem distinção entre o que é real e o que é imaginário. Um exercício de empatia.
            As confissões de Neruda² são ao mesmo tempo um convite para sentir o cheiro do mundo e para sofrer os dramas políticos de seu povo, tanto quanto Graciliano Ramos³ nos resseca a garganta relatando o cotidiano de uma família na seca do Nordeste brasileiro, provocando uma sensação que se pode jurar que é fome, mas que também se parece tanto com angústia. Por meio da literatura, pode-se remoer questões de honra e dúvida com Bentinho e Capitu, de Machado de Assis4, num tempo de rígidas regras teóricas de conduta, e saber como é sentir muito medo com Anne Frank5 escrevendo seu diário escondida do regime nazista durante a Segunda Guerra.
Com frequência, é preciso parar a leitura para acalmar o coração ou secar os olhos, com a possibilidade de, às vezes, convencer-se de que o que fora lido não era verdade, pois muitas vezes é somente uma invenção que nos arrasta ao fundo das sensações. Sozinho, o leitor não poderia sentir os sentimentos dos robôs, como foram propostos por Asimov6, nem relativizar as razões e desrazões dos bichos em revolução de George Orwell7. O imaginário desses autores possibilita-nos alçar voos que exercitam a capacidade de pensar e sentir como um outro alguém que vive em um contexto que nos é estranho. A literatura desloca o centro de equilíbrio dos conceitos próprios e propõe caminhos de emoção que são tão diversos como intocáveis, por outro meio. O autor não entrega tudo; propõe, dá espaço ao imaginário único de cada leitor, que quase se ofende ao perceber que nos filmes baseados em livros – outro leitor, outra leitura – as mesmas palavras escritas formaram outras imagens. Infinitas possibilidades de construção sobre um mesmo alicerce. O leitor pode interagir com o texto em seu íntimo, tanto quanto o texto pode modificar o leitor.
O exercício de empatia que a literatura propõe, com personagens e situações reais ou imaginárias, pode ter uma função social. A literatura permite desenvolver a capacidade de deslocamento do próprio centro de conceitos para o do outro, permitindo uma maior tolerância à diferença. Isso facilita o convívio com outras realidades e oferece acesso ao rol de sentimentos e significados que cada indivíduo, socialmente considerado, pode oferecer.
            O leitor abre o livro e tem o poder de fechá-lo quando precisar respirar na própria realidade para sanar angústia de ser a mulher do médico, com o seu olho numa terra de cegos, tal qual imaginado por Saramago8. Da mesma forma, toca-se a mão de Hemingway9 e experimenta-se o que é ser o velho pescador Santiago, em sua aldeia, em sua aventura de pescar um marlim. O leitor não poderia se aproximar dessa experiência de outra forma, não poderia se emocionar e sofrer com essa luta se não se permitisse seguir o pensamento do autor por meio de suas palavras escritas em ligação direta, sem filtros.
Esse mergulho nos significados do outro, dando medida inclusive de época e contexto histórico, pode transportar o leitor no tempo, oferecendo uma possibilidade de entendimento por imersão, mais do que uma aula ou estudo pode oferecer. O sentimento é de estar em outro tempo histórico, vivenciando seus usos e costumes, filtrado pelas personalidades únicas de cada um dos personagens. Essa experiência pode permitir que, ao fechar do livro, incorpore-se ao leitor a possibilidade de fazer outras leituras do mundo, que modifica e engrandece a sua própria, por aumentar a capacidade de deslocamento do seu entendimento usual acerca dos fatos.
O leitor que se permite montar com Dom Quixote10 no seu fiel cavalo Rocinante e sentir a sua aventura de forma plena poderá, talvez, olhar para as aventuras reais dos seus pares, entendendo que o mundo concreto de cada pessoa é único e singular, e por mais que lhe pareça insano, merece respeito e tolerância.




Referências:
1-      Sherazade, personagem  narradora do Livro das mil e uma noites,que se estima ter sido escrito no século XIII.
2-      Pablo Neruda, no livro Confesso que vivi, publicado em 1974.
3-      Graciliano Ramos, no livro Vidas Secas, escrito no final da década de 1930.
4-      Dom Casmurro, de Machado de Assis, publicado em 1899.
5-      Anne Frank em O diário de Anne Frank, publicado em 1947.
6-      Isaac Asimov, no livro de contos Eu, robô, publicado em 1950.
7-      A revolução dos bichos, de George Orwell, publicado em 1945.
8-      José Saramago, no livro Ensaio sobre a cegueira, publicado em 1995.
9-      Ernest Hemingway, no livro O velho e o mar, publicado em 1952.
10-  Dom Quixote, personagem do livro de mesmo nome, escrito por Miguel de Cervantes e publicado em 1605.

terça-feira, 26 de março de 2013

PALESTRAS EM ABRIL NA BIBLIOTECA HANS C. ANDERSEN


SERÃO TRÊS PALESTRAS IMPERDÍVEIS

A GENTE SE ENCONTRA POR LÁ!

AS INSCRIÇÕES DEVEM SER FEITAS POR TELEFONE CINCO DIAS ANTES DE CADA EVENTO.

Av. Celso Garcia, 4142
Tatuapé - 03064-000 
São Paulo, SP
Tel.: 11 2295-3447 
Horário: 2ª a 6ª feira das 10h às 19h e sábado das 9h às 16h

Coordenadora: Luciana Maria de Melo
bibliotecahans@gmail.com


Palestra: Por que Contar Histórias nos dias de hoje?
Com Eliana Braga Aloia Atihé, graduada em Comunicação Social e Letras, mestre em Comunicação e Semiótica e Doutora em Educação. 
Cada vez mais, o contador de histórias precisa compreender seu papel fundamental numa sociedade em crise, a partir de uma perspectiva psico-sócio-antropológica (e também mítica e cosmológica), que o auxilie a construir uma visão de mundo para nela ancorar sua experiência. É urgente seu envolvimento num projeto de proteção, reparação e ampliação da etnosfera, a rede cultural da vida a qual, tal como a biosfera, garante nossa existência como seres humanos. O encontro propõe uma revisão do papel do contador de histórias a partir dos desafios propostos por nossa época. Inscrições diretamente na biblioteca.
Dia 6 de abril às 9h30

Palestra: Era uma voz que sempre dizia – Era uma vez...

Com Ilan Brenman, mestre em Educação pela USP, psicólogo, autor de livros infantis e contador de histórias.
A voz do contador de histórias ressoa para sempre na alma dos que viveram os contos ouvidos, contos nos quais moram bruxas, princesas, feiticeiros, soldados, heróis, monstros e seres fantásticos. No recôndito da memória, modulações, timbres, gestos e expressões corporais evocam alguém contando, em algum momento e em algum lugar. A voz e as palavras do contador, articulando-se em emoções e enredos, passam pelo seu corpo e ressoam nos seus ouvintes, estabelecendo ligações invisíveis. No caminho de formação de um leitor, passa-se, certamente, pelos momentos de ouvir histórias. Momentos em que a oralidade assume toda sua importância - mesmo nas sociedades contemporâneas - de forte cunho escrito e escassas oportunidades de narração. Inscrições diretamente na biblioteca.
Dia 20 de abril às 11h

Palestra: O mundo simbólico da criança

Com Eliana Atihé, graduada em Comunicação Social e Letras, mestre em Comunicação e Semiótica e Doutora em Educação
Partindo de uma abordagem não cognitivista, mas simbólica, o encontro buscará uma compreensão da evolução da consciência do ser humano a partir de um paradigma que considera todos os aspectos da inteligência com a mesma ênfase e busca: enxergar na criança o ser humano. Um desvio da função genuína da educação, o qual, segundo E. Kant,"integrado de corpo e alma cujas qualidades devem ser preservadas e desenvolvidas por meio de uma educação da totalidade”. Inscrições diretamente na biblioteca.
Dia 27 de abril às 9h30

quarta-feira, 20 de março de 2013

HOJE É DIA DO CONTADOR DE HISTÓRIAS. VIVA!!!


"Pássaros de mesma plumagem se juntam em bando"

do livro A palavra do contador de 
histórias (Gislayne Avelar de Matos)

Se juntar em bando tem sido fundamental para mim. Dessa maneira, me fortaleço, me revigoro e aprendo cada vez mais este ofício e arte cheio de maravilhas que é o universo da contação de histórias.

Contar histórias é passar a vida a limpo! E quanto mais eu conto, mais necessidade eu sinto de fazê-lo. Compartilhar histórias é vislumbrar sonhos pessoais e coletivos, é dar uma chance a mais para que as pessoas se reconheçam, se sintam partes de um mesmo todo e possam perceber o poder que está nisso.

Contar e ouvir histórias é dar e receber amor e dor e também todo tipo de sentimento que nos liga à humanidade, é estar próximo do essencial da vida.

Sou feliz e realizada por estar neste caminho: caminho que me pertence, caminho ao qual eu pertenço.

Sou grata por todas pessoas me (re) colocam neste lugar, seja através de um olhar de cumplicidade, de um gesto emocionado, de uma lágrima ou um sorriso, de uma palavra, de um abraço...

Desejo estar sempre com olhos, coração e ouvidos abertos para acolher pessoas com suas histórias que, na verdade, são minhas histórias nelas, são nossas histórias em todos.


Rosita Flores

quinta-feira, 14 de março de 2013

Para o Dia Nacional da Poesia: Um bom poema


"Um bom poema é aquele que nos dá a impressão

de que está lendo a gente ... e não a gente a ele!"
Mário Quintana
Imagem 1. Poeta Mário Quintana 


No mês de março, três datas comemorativas se entrelaçam de maneira harmônica: Dia Internacional da Mulher (08/03), Dia Nacional da Poesia (14/03) e o Dia Mundial da Poesia (21/03)

Imagem 2. Poeta Paulo Leminski
Passei um pedaço da tarde de hoje lendo poesias, escolhendo alguma para colocar aqui no Dedo de Prosa. Fiquei na dúvida entre algumas e, por um momento, pensei em colocar várias. Entretanto, fiquei entretida com projetos e histórias até que eu fui salva! Minha querida amiga, ávida leitura, amante de poesia e talentosa escritora, Giovanna Artigiani, me enviou uma poesia do Leminski que coube muito bem para o dia de hoje porque fala sobre o fazer poema, ou seja, é um metapoema ou metapoesia e intitula-se: Um bom poema.

E por coincidência ou não, eu acredito que não, eu encontrei um poema de Mário Quintana de mesmo nome , o qual abre essa postagem. Os dois poetas são do sul, sendo que Mário nasceu no Rio Grande do Sul e Leminsk no Paraná. Com todas essas sincronicidades, eu acredito que a escolha para o Dia Nacional da Poesia aqui no Dedo de Prosa foi certeira. Espero que apreciem.




Um bom poema leva anos
Cinco jogando bola
Mais cinco estudando sânscrito
Seis carregando pedra,
Nove namorando a vizinha,
Sete levando porrada,
Quatro andando sozinho,
Três mudando de cidade,
Dez trocando de assunto,
Uma eternidade, eu e você
Caminhando junto.

Paulo Leminski


Você tem algum poema ou poesia para enviar ao Dedo de Prosa? Que tal escrever alguma poesia para publicar por aqui? 

Deixo aqui o convite,

Abraços com desejos de uma noite cheia de poesia

Rosita

terça-feira, 12 de março de 2013

O HOMEM DO SACO

Estava dando uma olhada nas postagens da rede social, quando me deparei com esse texto na página do meu amigo Valter Cassalho (folclorista e historiador) que explica a suposta origem do Homem do Saco.

Confiram, é assustador! Se você souber de mais alguma coisa relacionada ao tema, envie para o blog!

Abraços,
Rosita

Imagem copiada da página da rede social - Facebook do perfil de Imagens Históricas
https://www.facebook.com/HistoricasImagens


O Homem do Saco

Entre 1400 e 1440, externamente Gilles de Laval, senhor de Rais, nunca dera sinal algum de sua natureza monstruosa e assassina, que um dia assombraria toda a Europa. Era conhecido como um nobre de natureza piedosa e religiosa e por ser caridoso com os pobres.

Após anos gastando sua fortuna, de Rais se viu quase sem recursos, quando resolveu consultar uma mulher que se intitulava feiticeira. Para recuperar os bens perdidos, a mulher aconselhou Gilles a sacrificar crianças para um demônio chamado Barron.

Em 1440, então, os sintomas de depravação de Laval começaram a ficar sob suspeita, visto que crianças iam até seu castelo de Tiffauges, próximo a Nantes, para pedir esmola e jamais voltavam para casa. Outras histórias macabras de orgias sexuais, torturas, sodomia, ocultismo e magia negra no castelo Tiffauges começaram a ser espalhadas pela Europa.

Devido a essas e outras histórias, o Bispo de Nantes, Jean de Malestroit, decidiu investigar as ações de Gilles de Rais, acabando por descobrir fatos horripilantes e, em setembro de 1440, de Laval foi preso e ameaçado de tortura. Em seu julgamento, Gilles confessou suas atrocidades, entre as quais estavam a prática do satanismo, heresia, sodomia, abjuração, sacrilégio, sequestro e tortura e, por fim, assassinato e mutilação de mais de 100 crianças. Certas partes de sua confissão se mostraram tão macabras, que foram removidas dos registros do processo.

Em outubro de 1440, Gilles de Laval foi enforcado e seu corpo queimado. Seus crimes foram tão chocantes que ele acabou se tornando, à época, símbolo universal do mal e logo viraria lenda, sendo invocado como "o homem do saco" para assustar crianças desobedientes que queriam ficar nas ruas. Outras histórias também foram baseadas em seus crimes, por exemplo o Barba Azul de Charles Perrault em "Histórias ou Contos de Tempos Passados" (1697). O Barba Azul era um rico nobre que matou sete de suas esposas, pendurando seus corpos pelas paredes de um cômodo do castelo.

Até hoje Gilles de Laval, o senhor de Rais, é destaque entre os assassinos em série mais macabros e horripilantes, segundo historiadores.

Texto de Talita Lopes Cavalcante
Administração Imagens Históricas

Ilustração de Jean Antoine Valentin Foulquier, "Gilles de Laval Lord of Rais performs sorcery on his victims", First Gallery, 1862.

Fonte: LEWIS, Brenda Ralph. A História Secreta dos Reis e Rainhas da Europa. Editora Europa: 2008. p. 22-23.

Mais sobre Gilles de Laval, o Senhor de Rais (em Francês): http://museepaysderetz.free.fr/gilles-retz-1.html

sexta-feira, 8 de março de 2013

São os Cabelos das Mulheres

Para o dia de hoje, quero compartilhar um lindo texto que reverencia a beleza, a força, a leveza, a sutileza, a audácia e a astúcia das mulheres. Para sempre nos lembrarmos  do que somos capazes! 


São os cabelos das mulheres 
autoria da talentosíssima escritora Marina Colasanti

Naquela aldeia de montanhas perdida entre neblinas, a chuva havia começado há mais tempo do que era possível lembrar. Só a água vinha do céu, em fios tão cerrados que as nuvens pareciam cerzidas ao chão. As plantações haviam-se transformado em charcos, as roupas já não secavam junto aos fogos fumacentos, e pouco ou nada restava para comer.

Reuniram-se os velhos sábios em busca de uma resposta, e longamente deliberaram estudando as antigas tradições.
- São os cabelos das mulheres - disseram por fim. E obedecendo aos pegaminhos, ordenaram que fossem cortados.
Na praça da aldeia, desfeitas tranças e coques, soltos todos os grampos, os longos fios que chegavam à cintura foram decepados rente à raiz, e entregues á chuva. Todos os viram descer na correnteza, ondulantes e negros. Todos se encheram de esperança, enquanto as mulheres abaixavam a cabeça deixando a água escorrer em filetes sobre a pele nua.
De fato, pouco demorou para que as nuvens levassem sua carga em direção ao vale, desfazendo-se ao longe. e o sol acendeu-se num céu tão enxuto e limpo que parecia novo.
Aquecia-se ao sol a antiga umidade guardada entre pedras e grotas. Vindas daquele calor, talvez, daqueles vapores abafados no escuro silêncio, longas serpentes negras começaram a deslizar para a luz.
Os homens só se deram conta da temível presença quando os campos abaixo da aldeia já estavam invadidos. Com asco e horror as encontravam de repente enroscadas no cabo de uma enxada, no fundo de um cesto, ou brilhando entre os sulcos. Eram tantas. De nada adiantava caçá-las; cortadas ao meio ou degoladas por facão ou foice multiplicavam-se, cada parte adquirindo vida própria e afastando-se como se recém-saída do ovo.
Quase não lhes bastassem os campos, começaram a deslizar em direção a aldeia. Em breve bastou afastar um móvel, abrir um armário, para encontrar uma serpente enovelada. Qualquer cobertor, qualquer travesseiro, qualquer manta ou almofada podia ser seu ninho. E entre as achas de lenha, entre as talhas de azeite, entre os gravetos e as cinzas do fogão, entre os grãos nas despensas, por toda parte e em todo canto cobras ondulavam suas espirais.
_ São os cabelos das mulheres! - exclamaram afinal os aldeões, sem necessidade de reunir os sábios.
E as mulheres riram, escondendo o rosto nos lenços e nos xales com que cobriam suas cabeças.
_Acabem com isso! - ordenaram-lhes os sábios. E não se referiam ao riso, mas às serpentes. E com voz que não admitia réplica, repetiram _ Acabem com isso, mulheres!
Mas como acabar com o flagelo se lhes faltava o remédio? _ responderam as mulheres. E acrescentaram - Cabelos. Para acabar com esses precisamos dos nossos.
E cabelos elas não tinham. Parecia inútil procurar. Por baixo dos lenços apenas uma leve penugem despontava. nenhuma mulher havia sido poupada. Ainda assim procuraram de casa em casa, mesmo nas mais distantes, até que, escondida entre as saias das irmãs mais velhas no fundo de um casebre, encontraram uma menina. Uma menina pequena, tão pequena que ao tmepo das chuvas havia sido confundida com um menino. Uma menina pequena, com um rabichinho magro.
Desatado o cordão que prendia o rabicho, os cabelos desceram cobrindo as orelhas. A mãe colheu um fio, enfiou-o numa agulha. Todos olhavam. Todos viram a mãe levantar uma pedra, suspender a serpente que ali se abrigava e, com os pontos firmes, coser-lhe a boca. Todos viram a serpente afastar-se deslizando ladeira abaixo.
O rabicho da menina já era apenas um fio quando a última ondulação negra desceu a encosta e a grama fechou-se sobre o seu rastro.
E passado algum tempo, a serenidade havia voltado à aldeia. Sem que, porém, viesse com ela a alegria. O frio demorava-se, sem abrir caminho à primavera. as mulheres caminhavam no vento com a cabeça coberta, todas elas envoltas em panos. As brotações tardavam, as sementes não germinavam na terra gelada, nem chegavam as aves migrantes.
ainda fazia frio na manhã em que a primeira mulher tirou o xale. Sacudiu a cabeça. Os cabelos, que haviam crescido, rodearam-lhe o rosto. E orque aquela havia tirado o xale, uma e logo outra a imitaram, uma quarta desfez sobre a testo o nó que prendia o lenço, cabeças de mulheres assomaram às janelas descobertas. Os cabelos, lisos, crespos, ondulados, dançaram livres farfalhando como folhas, cintilaram ao sol que de repente não parecia tão pálido. Em algum ponto daquela manhã, a primavera pôs-se a caminho.
_ São os cabelos das mulheres - disseram os homens farejando o ar que se fazia mais fino. E sorriram.



São os cabelos das mulheres, págs. 35-38 do livro Histórias de um viajante, Marina Colsanti. São Paulo, 2005 Ed. Global