Giovanna
Artigiani
O ser humano é fascinado por
histórias – e quem não queria ter uma Sherazade¹ no bolso? A literatura tem o
poder de desfocar o mundo do leitor do centro da sua vivência pessoal e
mergulhá-lo numa outra realidade completa, na qual o sentimento é o de realmente
experimentar o que é estar na pele de outra pessoa, em seu universo complexo,
sem limite de tempo e espaço, sem distinção entre o que é real e o que é
imaginário. Um exercício de empatia.
As confissões de Neruda² são ao
mesmo tempo um convite para sentir o cheiro do mundo e para sofrer os dramas
políticos de seu povo, tanto quanto Graciliano Ramos³ nos resseca a garganta
relatando o cotidiano de uma família na seca do Nordeste brasileiro, provocando
uma sensação que se pode jurar que é fome, mas que também se parece tanto com
angústia. Por meio da literatura, pode-se remoer questões de honra e dúvida com
Bentinho e Capitu, de Machado de Assis4, num tempo de rígidas regras
teóricas de conduta, e saber como é sentir muito medo com Anne Frank5
escrevendo seu diário escondida do regime nazista durante a Segunda Guerra.
Com
frequência, é preciso parar a leitura para acalmar o coração ou secar os olhos,
com a possibilidade de, às vezes, convencer-se de que o que fora lido não era
verdade, pois muitas vezes é somente uma invenção que nos arrasta ao fundo das
sensações. Sozinho, o leitor não poderia sentir os sentimentos dos robôs, como
foram propostos por Asimov6, nem relativizar as razões e desrazões
dos bichos em revolução de George Orwell7. O imaginário desses
autores possibilita-nos alçar voos que exercitam a capacidade de pensar e
sentir como um outro alguém que vive em um contexto que nos é estranho. A
literatura desloca o centro de equilíbrio dos conceitos próprios e propõe
caminhos de emoção que são tão diversos como intocáveis, por outro meio. O
autor não entrega tudo; propõe, dá espaço ao imaginário único de cada leitor,
que quase se ofende ao perceber que nos filmes baseados em livros – outro leitor,
outra leitura – as mesmas palavras escritas formaram outras imagens. Infinitas
possibilidades de construção sobre um mesmo alicerce. O leitor pode interagir
com o texto em seu íntimo, tanto quanto o texto pode modificar o leitor.
O
exercício de empatia que a literatura propõe, com personagens e situações reais
ou imaginárias, pode ter uma função social. A literatura permite desenvolver a
capacidade de deslocamento do próprio centro de conceitos para o do outro,
permitindo uma maior tolerância à diferença. Isso facilita o convívio com
outras realidades e oferece acesso ao rol de sentimentos e significados que
cada indivíduo, socialmente considerado, pode oferecer.
O leitor abre o livro e tem o poder
de fechá-lo quando precisar respirar na própria realidade para sanar angústia
de ser a mulher do médico, com o seu olho numa terra de cegos, tal qual imaginado
por Saramago8. Da mesma forma, toca-se a mão de Hemingway9
e experimenta-se o que é ser o velho pescador Santiago, em sua aldeia, em sua
aventura de pescar um marlim. O leitor não poderia se aproximar dessa
experiência de outra forma, não poderia se emocionar e sofrer com essa luta se
não se permitisse seguir o pensamento do autor por meio de suas palavras
escritas em ligação direta, sem filtros.
Esse
mergulho nos significados do outro, dando medida inclusive de época e contexto
histórico, pode transportar o leitor no tempo, oferecendo uma possibilidade de
entendimento por imersão, mais do que uma aula ou estudo pode oferecer. O
sentimento é de estar em outro tempo histórico, vivenciando seus usos e
costumes, filtrado pelas
personalidades únicas de cada um dos personagens. Essa experiência pode
permitir que, ao fechar do livro, incorpore-se ao leitor a possibilidade de
fazer outras leituras do mundo, que modifica e engrandece a sua própria, por
aumentar a capacidade de deslocamento do seu entendimento usual acerca dos
fatos.
O
leitor que se permite montar com Dom Quixote10 no seu fiel cavalo
Rocinante e sentir a sua aventura de forma plena poderá, talvez, olhar para as
aventuras reais dos seus pares, entendendo que o mundo concreto de cada pessoa
é único e singular, e por mais que lhe pareça insano, merece respeito e
tolerância.
Referências:
1- Sherazade,
personagem narradora do Livro das mil e uma noites,que se estima
ter sido escrito no século XIII.
2- Pablo
Neruda, no livro Confesso que vivi, publicado
em 1974.
3- Graciliano
Ramos, no livro Vidas Secas, escrito
no final da década de 1930.
4-
Dom
Casmurro, de Machado de Assis, publicado em 1899.
5- Anne
Frank em O diário de Anne Frank,
publicado em 1947.
6- Isaac
Asimov, no livro de contos Eu, robô, publicado
em 1950.
7-
A
revolução dos bichos, de George Orwell, publicado em 1945.
8- José
Saramago, no livro Ensaio sobre a
cegueira, publicado em 1995.
9-
Ernest Hemingway, no livro O velho e o mar, publicado em 1952.
10- Dom
Quixote, personagem do livro de mesmo nome, escrito por Miguel de Cervantes e publicado
em 1605.