Hoje eu quero apresentar para vocês uma querida amiga minha que é muito talentosa com as palavras. Eu tenho o privilégio de ler, desde à época da faculdade, alguns de seus escritos. Quando nos formamos, a Giovana (é o nome desta minha amiga) se mudou para Florianópolis onde mora até hoje - já faz um bom tempo isso. A Giovana continuou derramando seus sentimentos, ideias e imaginação na ponta de uma caneta e foi ficando tão boa nisso que, atualmente, participa com sucesso de concursos literários. PARABÉNS, GI!
Quando a Gi veio aqui em casa visitar o Joaquim, eu recebi de presente o conto O advento de Astrolábio e Claraboia. Durante a leitura a emoção ficou à flor da pele. Sentimentos diversos afloraram. Lágrimas quiseram se esconder. A leitura foi deleite do começo ao fim.
Desejo que vocês tenham uma ótima leitura e assim como eu, também se deleitem.
Aproveito, a partir deste, para anunciar que o blog está aberto para receber outros contos, textos, ensaios para publicação.
Venha dar um Dedo de Prosa com a gente!
Grande Abraço e ótima leitura.
Conto
selecionado no Concurso da Associação Nacional de Escritores
Para
participação em antologia comemorativa dos 50 anos da ANE- Brasília (2012)
“O advento de Astrolábio e Claraboia”
Giovanna Artigiani
Ele
tinha fama de esquisito. Sempre foi assim e já fazia muito tempo que o rótulo
tinha deixado de incomodá-lo e tinha passado a lhe ser indiferente. Ele já
tinha sido ponto de referência “tem um lugar vago ali ao lado daquele cara
estranho”; ele já tinha sido tomado como exemplo de trivialidade “mas se até ele faz, você também vai conseguir”; ele
já tinha tomado carão de policiais “vê se te ajeita melhor cara, você foi o
primeiro que eu suspeitei”.
Jonas
era dono de um pensamento rápido e de um gosto duvidoso. Gostava mais de ouvir
do que de falar. Preferia ficar só com as suas manias, sabia de antemão que
suas escolhas não interessavam a ninguém. Só quem não o achava um caso perdido
era a mãe, que pouco o via, mas o presenteava insistentemente com camisas pólo.
Os
dias, compridos, eram ocupados com pintura, música e solidão. Dedicava-se a
pintar quadros minuciosos, abstratos, densos. Ele pintava seu turbulento
universo interno. Havendo um dia de sol ele saía de sua toca e expunha as
pinturas na rua, em frente a um parque e nem sempre gostava de ouvir os
comentários dos observadores. Para evitar questionamentos colocava um pequeno
papel abaixo de cada quadro com uma palavra nomeando o quadro como “mágoa”,
“saudade”, “raiva”, “admiração”, coisas assim. No mesmo papel, em menor
tamanho, o preço, que na verdade não queria dizer nada. Se outro valor fosse
oferecido, ele daria de ombros e aceitaria. Alguns olhos maduros se demoravam
na observação dos quadros, alguns olhos infantis se demoravam na observação de
sua pessoa, alguns olhos o repreendiam na sua suposta vadiagem, muitos olhos
sensatos o ignoravam. Respondia às crianças, apontando, que tinha vindo do céu,
respondia aos beneméritos com um gesto de não.
O
pintor vivia em um velho porão, alugado por uma senhora de muitos anos que
morava na casa de cima sozinha. O pequeno quintal era só dele e tinha aparência
de pouco cuidado. O valor do aluguel não era reajustado há anos. Jonas e a
senhora não se falavam há meses. Frequentemente, estando em sua casa por dias,
ele se esquecia do mundo. Não obedecia às convenções das horas.
Estando nas proximidades do parque dividia o
espaço com outros vendedores alternativos. Para quem tem tempo e vontade de
observar era fácil perceber que as pessoas se repetiam por ali. Havia certa
previsibilidade no desfile urbano: muito cedo era o vento acordando tudo,
depois vinham os apressados maiores e menores, na sequência viam os
recém-aposentados, os esportistas obstinados, as mães e as crianças bem
pequenas, os aposentados experientes, os cães cheiradores que ficavam ali, as crianças
que voltam da escola, os apressados sem pressa completando a hora do almoço, as
crianças um pouco maiores com suas mães, os jovens namoradores, os apressados
de novo e os esportistas cansados. Vinha o vento de novo gelando tudo.
Eventualmente vinham os exaustos limpadores das ruas e os policiais sisudos.
O
convívio era pacato entre os vendedores. Havia alguma conversa entre a maior
parte deles, alguma camaradagem em cuidar dos produtos para pequenas ausências
do outro, alguma partilha de alimento, nenhuma curiosidade sobre a vida alheia.
Dividiam o espaço, o tempo e os cães. Sempre se juntam cães a esses movimentos.
Como
já foi dito, havia certa previsibilidade na presença dos cães. E a
personalidade de um e outro, era demonstrada em diferentes situações. Para os
cães a vida é uma constante busca do cheiro, da comida, do abrigo e da
reprodução. Os humanos às vezes ajudam nas buscas caninas. O fato é que aqueles
humanos e cães acostumaram-se a estar naquele palco como personagens
principais, atravessados pelos passantes coadjuvantes.
Jonas
tinha por princípio não interferir no mundo, deixava que as coisas se
resolvessem sozinhas e que os fatos tomassem rumo sem a sua participação. Não
queria ser justo ou injusto, não queria ser causa ou consequência, não queria
participar de nada, envolver-se ou comprometer-se. Suas pinturas eram uma fala
à qual não cabia interlocução, como frases feitas. Mas o seu rápido pensamento,
em desacordo com seus princípios e em franca desobediência ao seu volátil voto
de silêncio, emitia incessantes julgamentos e observações, que reverberam e
produziam novas pinturas, quase sempre.
Um
fato.
Certa vez, vinha descendo
a rua um carro visivelmente desgovernado e em nítida rota de colisão com o
alambrado do parque, bem no ponto em que dormia tranquilo, aproveitando os
raios do sol, Astrolábio, o cão faminto. Contrário à sua índole Jonas gritou:
- Astrolábio!
E
o cão, como se soubesse que aquele nome era seu, alertou-se e correu junto à
trupe, fugindo do perigo e juntando-se aos demais, taquicárdicos, a poucos
metros do carro amassado.
Recuperado
do susto triplo – o carro desgovernado, a morte eminente do cão e a fala do
companheiro até então tido como mudo – comentou, jocoso e ritmado, um vendedor
da área:
- Mas é mesmo coisa que a gente se
espanta. O cara nunca falou nada, e quando fala, não fala assim pão e pedra,
diz logo o quê? Astrolábio!
O humano não nomeou para
poder comunicar, mas para transmitir um pertencer afetuoso. Mesmo sem querer,
aquele mundo era seu mundo, aquele cão era um pouco seu. Mesmo sem querer
interferir, ele se importava.
Certamente os cães, se
pudessem conversar entre si dariam nomes aos humanos como “o cheiro azedo” ou o
“cheiro de capim”. Assim, de mesma forma, os humanos presentes na frente do
parque costumavam denominar os cães como “a branquinha”, “o faminto” e outros.
Eram nomes operacionais, de um lado e de outro. Não se ocupavam nesta parte do
universo, com o uso de abstrações para fins práticos, apenas para fins
inespecíficos.
Naquele
mesmo dia ele pintaria o quadro “proteção”.
Certa
vez uma mulher muito jovem descreveu assim os quadros de Jonas para um cego:
- São cores, cores que se
movimentam mostrando um sentimento, elas se misturam em alguns pontos e em
outros estão mais puras.
Batismo feito, batismo
aceito. O cão passou a ser chamado de Astrolábio por todos e passou a se
comportar como se pertencesse um pouco mais a Jonas. Passou a acompanhá-lo até
em casa e nas noites de chuva, Jonas percebeu que ele dormia sob o tanque de
lavar roupas. Sem maiores exigências ele passou a cuidar do portão sempre
aberto. Economizava latidos como Jonas economizava palavras. Jonas pintou
“silêncio” e “amizade”.
O pintor passou a dar ao
cão restos de comida e recebia pequenas lambidas agradecidas. Jonas pintou “afago”.
Um dia, bem cedo,
Astrolábio latiu para chamar o Jonas. Ele tinha a companhia de uma pequena
cadelinha branco-suja de rabo retorcido. Claraboia podia ser seu nome. Esse é o
curso natural da história, mesmo que ninguém interferisse no rumo das coisas.
Jonas desejou
secretamente, pela primeira vez em sua vida, pintar “amor” nas costas nuas de
uma mulher.