quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

A Cia Duo Encantado se despede de 2014 com muita gratidão

Mais um ano bom chega ao fim. Para nós da Cia Duo Encantado, o ano de 2014 foi de boas conquistas e de muito trabalho. Foi um ano de muitos sorrisos guardados na memória e de muitas alegrias e sonhos compartilhados. Foi um ano de boas histórias contadas, ouvidas e vividas. Um ano também de muitas dificuldades e de trabalho árduo. Porém, colhemos muitos bons frutos. Também fizemos parcerias muito gostosas que fortaleceram nossa caminhada e trouxeram frescor ao nosso trabalho. 2014 foi um ano de plantio com mais maturidade e sabedoria. 








Programa Domingo no Parque (Biblioteca de São Paulo, Parque da Juventude)




















Nestes quase cinco anos de Cia Duo Encantado nós temos trilhado nosso caminho com perseverança, fé e muito estudo. E, aos poucos vamos colhendo conquistas, e duas delas foram muito especiais neste ano: nosso primeiro lugar no Edital de Fomento e Estímulo à Leitura da Prefeitura de São Bernardo do Campo com os projetos Livro na Roda: Contar histórias com o livro e Assim Estava Escrito; e a contemplação no edital de Literatura do SESI de São Paulo, com o repertório Mais que um susto!



Contando histórias no Festival Sul Americano de Cultura Árabe - Centro Cultural São Paulo e Bibliaspa
Ao longo deste ano fizemos trabalhos bem marcantes e de muita entrega, estudo e rotinas de ensaios. Quero destacar nossa participação no Festival Sul Americano de Cultura Árabe, com histórias árabes da tradição oral. Foram dias e dias de muito estudo, ensaio e conseguimos criar trilhas musicais lindas que emolduraram as histórias que foram contadas nos finais de semana de março no Centro Cultural São Paulo. Foi demais! No mesmo festival ministramos também um curso de formação em contação de histórias na Biblioteca Municipal Nuno Santana. 

Participamos mais um ano do Recreio nas Ferias, pelo PROART que é sempre tão gostoso! Fizemos apresentações em CEUs, circo, bibliotecas, escolas e teatros. E tivemos uma grata alegria em estreitar laços e firmar parceria com a Biblioteca de São Paulo, no programa Domingo no Parque. Foram vários domingos junto a um público alegre, descontraído e animado que parava para ouvir histórias, brincar e cantar com a gente nos parques: Villa Lobos e da Juventude.




Ah! E quanta alegria e satisfação em ministrar a oficina Baú da Infância: a arte de contar e brincar com a tradição oral, no centro cultural mais charmoso de São Paulo - a Casa das Rosas. Foram dois meses de tanta troca, de tantas e boas histórias e de muitos aprendizados, cantorias e brincadeiras nas manhãs de sábado. 



Grupo da Oficina Baú da Infância, Casa das Rosas
Oficina de brincadeiras tradicionais para os professores da EMEF Dias Gomes



Contando histórias na Pastoral da Criança, Butantã (Dia das Crianças)

































E foi neste ano, de 2014, que elaboramos o nosso primeiro repertório de contação de histórias para bebês. Foi sensacional! E foi lá na Casa das Rosas que estreamos em setembro. Quanta alegria e gratidão!


Virando Bicho para bebês - Casa das Rosas
Contamos histórias na rua, na praça, no coreto... Ah! Participar do Festival Baixo Centro foi uma experiência incrível e conheci artistas maravilhosos. E o que dizer do Festival de Cultura Paulista, o Revelando São Paulo? Belezas na nossa travessia de artesãos da palavra.


Festival Baixo Centro - Minhocão (São Paulo)
Participar das lutas de resistência dos moradores da cidade de Caldas, em Minas Gerais no evento VaiSuldeMinas em apoio à preservação da Área de Proteção Ambiental da Pedra Branca no início de dezembro, foi de essencial importância para nós que acreditamos na força do trabalho artístico como algo libertador e de transformação de pessoas para um mundo melhor, mais generoso e mais bonito. 


Participação da Cia Duo Encantado no evento de resistência e luta para preservação da APA Pedra Branca em Caldas (sul de Minas Gerais)
Este ano está se despedindo da gente e nós nos despedimos dele com muita esperança, satisfação e com a certeza de estarmos no caminho que nos foi dado. 

No ano de 2014 a Cia Duo Encantado fez novas parcerias e consolidou outras. Amigos artistas se juntaram ao Duo e nossos projetos ficaram mais bonitos. Só temos a agradecer pelo carinho de cada um que "engrossou o caldo" com seus talentos, suas ideias, sua criatividade, sua vontade de estar junto. GRATIDÃO!! Gratidão também aos amigos que estão juntos na torcida, aos que vão nas apresentações, aos que vibram com nossas conquistas. Desejamos um Bom Natal e um 2015 com tudo de bom, belo e gostoso.
Que 2015 traga belas histórias pra todos nós.
Que em 2015 os laços construídos estejam ainda mais fortalecidos e que novas parcerias aconteçam. 



Contando histórias para a primeira infância no Colégio Torres

A Cia Duo Encantado, deseja a todos um Natal iluminado de alegria, perdão, esperanças e amor. E que em 2015, as boas histórias preencham nossos caminhos. 

Que em 2015 a gente se encontre pelas boas histórias.

Um grande e fraternal abraço. 

Rosita Flores e

domingo, 10 de agosto de 2014

Cada ramo, cada folha


Autoria de Giovanna Artigiani





            Timidamente, Vitor batia na porta de Takane. O que ele buscava ali era muito simples: queria aprender a fazer bonsais e sabia que Takane fazia isso. Pediria que ele lhe desse aulas, perguntaria o valor e combinaria os horários.
            Takane, lá do fundo do galpão, interrompeu sua atividade e chegou mais perto de Vitor, cumprimentando-o com um gesto de cabeça. Vitor expôs as suas ideias objetivamente. Takane escutou e lhe disse “Me acompanhe”. Andaram pelo galpão em silêncio, observando as árvores. Depois, Takane levou Vitor a um canto, onde havia mudas, e lhe disse que escolhesse uma para iniciar o cultivo do seu primeiro bonsai. Vitor escolheu uma rosqueira e Takane escolheu uma figueira.
            – Essas duas árvores ficarão juntas aqui nesta estante. Cada vez que você vier, trabalharemos no cultivo de bonsais com elas – e Takane despediu-se com um gesto de cabeça.
            Vitor entendeu que era o fim da aula. Pensou que aquele encontro fora pouco objetivo. Voltou a dali dois dias; sobrou meia hora no intervalo do almoço e ele resolveu passar no galpão, essa era a verdade.
            Ele entrou e foi até Takane, que lhe sorriu e se dirigiu à estante, onde seus bonsais esperavam pacientes. Cada um pegou a sua árvore e as levaram à bancada; Vitor observava Takane e tentava lhe imitar. Pegaram vasos rasos, cortaram as raízes um pouco e plantaram as árvores com as pontas dos dedos. Colocaram um pouco de água, bem pouco. Takane voltava com a sua árvore para a estante e Vitor entendeu que deveria fazer o mesmo. Era o fim da aula de novo.
            Vitor voltou mais duas vezes, e era sempre bem recebido. Parecia que Takane o estava esperando. Sempre que ele chegava, Takane de imediato interrompia o que estava fazendo para trabalharem juntos nos bonsais, como se ele estivesse completamente desocupado, mas na verdade Vitor via que ele sempre estava fazendo alguma coisa, que interrompia para lhe dar atenção. Pensou bastante se alguma vez em sua vida tinha recebido a visita inesperada de um amigo em seu escritório. Seus amigos nunca o visitariam lá, pois sabiam que ele jamais interromperia suas atividades para conversar com quem quer que fosse. Seus amigos mais íntimos marcavam horário, ligavam antes de ir, perguntavam se podiam entrar. Que coisa!
            Vitor então decidiu que na próxima visita ao galpão de Takane seria objetivo e perguntaria se poderiam combinar um horário para as aulas. Ele fez isso; Takane sorriu e respondeu objetivamente também:
– Este é o meu trabalho. Você vem, se eu estiver aqui, trabalhamos juntos pelo tempo necessário.
            Vitor gostava da companhia de Takane, tentou inclusive conversar com ele, como coisa que fazem os amigos. Por uma ou duas vezes tentou iniciar um assunto do tipo “Você assistiu o jogo ontem?” ou “Tem feito muito calor, não acha?” Mas Takane respondia sim ou não e o assunto morria outra vez. Vitor às vezes falava algo sozinho, contava algo do seu cotidiano, mas já não esperava mais a interlocução do amigo. Um dia, Takane falou a Vitor:
– Observe uma floresta. Tudo nela está crescendo e não há barulho o tempo todo, somente sons esparsos, necessários.
            Vitor passou, depois disso, a adotar outra postura: quando um assunto lhe viesse à cabeça, ele refletiria se era importante falar aquilo. Se não fosse algo absolutamente necessário para dividir, ele simplesmente esperava a vontade de falar passar. Muitos encontros se passaram em que ele notou que nenhuma palavra havia sido dita, mas os bonsais e aquela relação de amizade continuavam, sem nenhuma dúvida, a crescer.
            Vitor precisou muito, um dia, dizer a Takane que queria pagar pelas aulas. Takane sorriu e respondeu:
– Eu não dou aulas de cultivo de bonsais, não há nenhuma placa anunciando isso na frente do galpão.
– Mas você dá aulas para mim, Takane!
– Não sou eu que ensino, é você que aprende. Quando você vem, trabalhamos juntos, observando nossas árvores e tentando interagir com elas.
– Mas eu me sinto grato.
– Então isso muda tudo. Se você desejar fazer algo por mim, pode me ajudar na exposição de bonsais. No último final de semana de cada mês, abro o galpão para exposição e venda, das oito horas da manhã às oito horas da noite. Nesses dias, eu preciso de ajuda; você será bem-vindo.
            Vitor ficou estarrecido. Takane... que jogada de mestre! Ele pediu que Vitor o pagasse, se quisesse, com sua moeda de troca mais valiosa: seu tempo. Vitor perguntou-se se queria mesmo usar um final de semana inteiro seu com essa atividade, e o quê, afinal, os bonsais estavam representando em sua vida.
            No último final de semana do mês, lá estavam Vitor e Takane, abrindo o galpão e recebendo os visitantes. Vitor ficou muito impressionado consigo mesmo ao responder várias perguntas das quais não sabia que conhecia as respostas. Ao final do domingo, Vitor se sentia cansado, de uma forma diferente da que costumava sentir ao final de um dia de trabalho seu no escritório da agência de publicidade. Ele se sentia feliz por ter sido útil, e nem sempre se sentia assim ao entregar uma campanha publicitária. Eram trabalhos diferentes, como se pertencessem a mundos diferentes.
            Um dia, sentados lado a lado na bancada, cada um cultivando o seu bonsai, Vitor contou à Takane:
– Acabo de saber que vou ser pai.
– Como se sente?
– Assustado.
Takane disse, depois de alguns minutos:
– Criar filhos não é muito diferente de cultivar bonsais. A árvore tem uma força de crescimento própria, que você, como cultivador, tenta orientar, adubando as aptidões e podando o que considera maus instintos. O desafio é estar presente e atento, observar cada ramo e cada folha, saciar as necessidades na medida em que apareçam, dando somente o suficiente, na hora certa.
            Vitor nunca tinha ouvido Takane falar uma frase tão longa. Ele sabia que o amigo tinha dois filhos, que ajudavam também nos finais de semana da exposição. Aquele seu conselho de experiência vivida acalmou o seu coração.
            Vitor mudou-se de apartamento, estava arrumando a vida para receber a filha que chegaria em alguns meses. Sua agora esposa lhe sugeriu dar o novo endereço a Takane e lhe convidar para os visitar. Vitor chateou-se consigo mesmo por não ter pensado nisso antes, mas quando deu o endereço anotado para Takane, ressaltou que ele poderia vir quando quisesse.
            Takane sorriu, guardou o papel no bolso. Enquanto cultivavam seus bonsais, naquele mesmo dia, Takane fez uma pergunta a Vitor:
– Posso lhe pedir, bom amigo, que me ensine a fazer uma coisa?
            Vitor arregalou os olhos assustado com a pergunta, sem saber o que ele poderia saber fazer que o amigo quisesse aprender. Takane completou sua pergunta:
– Eu gostaria que me ensinasse a fazer caipirinha.
            Vitor deu uma risada gostosa e abraçou o amigo brevemente, para desconcerto total de Takane. Mas Vitor, bom brasileiro, não podia perder a chance de imitar o amigo:
– Não vou ensiná-lo. Vamos fazer juntos, você é que vai aprender.
            Em um dia à noite, na mesma semana, Takane bateria à porta do apartamento de Vitor, acenaria com a cabeça e entraria. Vitor nem pestanejou em interromper o trabalho que fazia no computador e ir com o amigo para a cozinha, fazer caipirinha.
            Enquanto trabalhavam, Takane tentou puxar um assunto: ele estudara, antes de vir, alguns nomes usados como sinônimo de cachaça no Brasil. Eles se divertiam relembrando nomes como “água que passarinho não bebe”, “marvada”, “branquinha” e outros, tão sugestivos quanto. Feita a caipirinha, foram saboreá-la na varanda.
            Depois que Takane foi embora, a esposa de Vitor comentou que foi muito estranho vê-los na varanda, tomando caipirinha em silêncio. Vitor pensou, com muita satisfação, que o silêncio não o incomodava mais. Esse ritual da caipirinha se repetiria muitas outras vezes, com grande satisfação para ambos.
            No galpão de Takane, enquanto cultivavam seus bonsais, Vitor perguntaria um dia ao amigo:
– Quando meu bonsai poderá ser considerado pronto?
            Takane riu:
– Nunca, Vitor; bonsais são vivos, não estão prontos nunca. Não são como caipirinha, que se aprende em um dia. Se você quer um novo desafio, podemos começar a trabalhar em outra muda. Você vai ver como algo que parece igual pode ser muito diferente.
            A filha de Vitor nasceu, começou a andar, começou a falar e foi para a escola. Nos finais de semana da exposição, a filha e a esposa de Vitor o visitavam no galpão e conversavam um pouco com os filhos e a esposa de Takane.
            Numa viagem de trabalho, nessa época, Vitor estava participando de dinâmicas de grupo com os colegas do escritório. Na entrevista com a psicóloga, pleiteando subir de cargo, ela se mostrou agradavelmente surpresa com o que chamou de hobby de Vitor. Vitor respondeu-lhe que era muito mais do que isso. Custava muito caro, custava o seu tempo.
            A amizade, já tão longa, via os bonsais iniciais tomarem formas, e outras árvores se juntaram às primeiras, invendíveis. Vitor contou a Takane que seria pai outra vez.
 Takane de novo perguntou:
– Como se sente?
E Vitor respondeu:

– Imensamente feliz. Posso cuidar de mais de um bonsai de cada vez.

sábado, 17 de maio de 2014

Festival Sul Americano de Cultura Árabe

TENDA DA PALAVRA

O mês todo de fevereiro foi de nos debruçar nos estudos dos contos, das lendas, da música e de outros aspectos da cultura árabe. Toda esta imersão foi com o objetivo de compor o repertório Tenda da Palavra, apresentado em ocasião do V Festival Sul Americano de Cultura Árabe o qual tivemos a grande satisfação em participar. Este ano foi bem especial porque houve uma parceria com o Centro Cultural São Paulo e vários eventos ligados ao festival, aconteceram neste espaço. Inclusive a contação de histórias que foi no Espaço de Leitura da Biblioteca Infantil.

Foram tardes esticadas ouvindo músicas árabes, lendo histórias, contos e sobre a cultura árabe. As  reuniões foram, inclusive, gastronômicas. Fizemos estudos da língua, da  música, das histórias e da geografia! E fomos pesquisar a maneira correta de dizer algumas palavras e frases que consideramos importantes para ilustras alguns aspectos das histórias ou até mesmo como forma de transmitir um pouco mais da cultura. Pesquisamos tecidos e adereços para compor um figurino que dialogasse com as histórias selecionadas e com a maneira como estávamos produzindo a apresentação. Ao final de cada ensaio, a gente sentia um cansaço bom e cheio de satisfação. Cada um de nós (Rosita, Giba e Marli) se envolveu tão profundamente com esse trabalho, que sentíamos até um certo frio na barriga em pensar que acabaria em trinta de março.

Nos estudos individuais, eu narrava as histórias e filmava, simultaneamente. Assim percebia os detalhes dos gestos, entonação de voz, expressão corporal, vícios de linguagem, uso de adereços, entre outras coisas. Giba se concentrava ouvindo músicas e melodias árabes e toques no djembe, além de estudar a manipulação do boneco Vovô Said. Sim, houve também manipulação de boneco. Giba criou um personagem libanês chamado Vovô Said que brincava com a plateia e apresentação algumas coisas da cultura árabe de uma maneira divertida e simpática. A Marli, por sua vez, pesquisava entre seus trabalhos e vivências as melodias e músicas árabes e trazia sempre uma novidade para a gente.

Devo confessar que as histórias da cultura árabe tem uma profundidade e densidade muito grandes e o tempo todo ficávamos testando maneiras de apresentar as histórias de uma maneira divertida e interativa, palatável para as crianças sem que, no entanto, perdessem sua complexidade. Os contos escolhidos foram da tradição oral árabe e alguns, eu selecionei de livros do Malba Tahan em que ele faz uma releitura dos contos. Opa! Houve uma exceção. Um dos contos foi autoral, e eu tive esse desafio maior que foi estudar um conto árabe escrito por Paulo Farah (diretor da Bibliaspa, estudioso da cultura árabe). Uma grande responsabilidade estava em minhas mãos. O conto de Paulo Farah (diretor da Bibliaspa), intitulado O contador de histórias faz um percurso pela cultura árabe, dando especial atenção para a força da oralidade e da amizade. Uma história muito sensível e bela. Foi um maravilhoso presente.

Ah! Tivemos também a interpretação em libras: adorei! As profissionais que nos acompanharam mandaram muito bem. Vocês podem comprovar com a foto abaixo.



No final das contas, nós todos gostamos muito do resultado!

Em todos os dias de apresentação nós tivemos a grata satisfação de receber amigos que vinham prestigiar.

Como transmitir para quem não foi, a intensidade de tudo o que foi a nossa temporada de contos árabes no Centro Cultural São Paulo? Não há como, porém acho que pelo meu relato e as fotos, deu pra ter o gostinho.





Festival Baixo Centro

FESTIVAL DE RUA DO BAIXO CENTRO






Gosto muito de pensar na rua como um lugar de encontro, de partilha, de brincadeira, de festa e que enseja a convivência social e cidadã.
Gosto de sair às ruas e ver seus artistas nos faróis e nas praças.
Gosto de ver a rua tomada de gente envolvida numa procissão, num cortejo, em uma festança boa de São João, num bloco de carnaval.
A rua é o lugar de todo mundo. Na rua tudo coexiste e tudo pode ser.
A rua é viva e dinâmica. Nela espreitam oportunidades, delírios, ousadias, democracias. A rua é um lugar democrático por excelência.
E como é bom quando conseguimos vislumbrar infinitas possibilidades e jeitos de estar e ser na rua! Só mudando o olhar para perceber riquezas deste lugar comum à todos e pouco explorado.
O Festival Baixo Centro é uma destas manifestações que acontecem na rua e profundamente democrática desde sua concepção, organização e tudo o mais.

Ano passado eu me inscrevi, mas não consegui ir porque tudo ficou embolado. Esse ano eu me organizei melhor para poder participar, um pouquinho que fosse dessa maravilha que é o Festival Baixo Centro. No mesmo dia, eu tive também outra apresentação, na Biblioteca de São Paulo em horários próximos. Quase pensei em desistir, de novo, entretanto eu mantive a fé em que tudo iria dar certo. E deu mais que certo!
Além de ter passados momentos incríveis fazendo arte na rua, ainda pude conhecer uma artista incrível - a Carolina Velasquez com seu Fabuloso.

Fui com Giba Santana e eu contei histórias, ele tocou, nós e público cantamos, brincamos e fomos personagens das histórias. Na rua tudo acontece de um jeito espontâneo.

Ah! Como foi bom. Ano que vem eu quero mais.

Deixo os meus agradecimentos para a rua!

Um grande abraço,

Rosita Flores

segunda-feira, 17 de março de 2014

Apresentação de Giba Pedrosa no Centro Cultural São Paulo

Os Gibas (Santana e Pedrosa e eu)
O contador de histórias Giba Pedrosa no V Festival Sul Americano de Cultura Árabe

O grande contador de histórias, Giba Pedrosa esteve presente no Centro Cultural de São Paulo nos dois primeiros finais de semana de março, integrando as atividades do Festival Sul America no Cultura Árabe (http://festivaldaculturaarabe.wordpress.com/) e contando muitas e divertidas histórias.


Giba Pedrosa - Contos Árabes CCSP
Foi muito gostoso assistir sua apresentação neste último domingo. Giba Pedrosa é um grande mestre não só conta admiravelmente histórias de tudo quanto é tipo, como também usa as brincadeiras de palavras, piadas e adivinhas permitindo que o público interaja e participe de forma muito divertida.

Giba Pedrosa, Joca e o Pato 
O domingo de contos árabes teve a presença forte dos contos de Nasrudin além de histórias com animais, sultão, princesas e até um alfaiate (O alfaiate desatento - in O violino cigano, histórias da tradição oral por Regina Machado, 2007) que na voz de Giba Pedrosa ganham um encanto sui generis

Fiquei muito grata e feliz por Giba me convidar ao final, gentilmente, para contar uma história de Nasrudin. 

Como se diz: Quem foi, foi e quem não foi, perdeu. Para deixar quem não foi com água na boca e quem foi com uma lembrança viva eu os presenteio com algumas fotos (desculpem-me pela falta de qualidade das imagens) e duas histórias. Aproveitem!

Ah! E não deixem de ir nos próximos finais de semana de março ouvir histórias com a gente da Cia Duo Encantado. 



Rosita Flores contando Nasrudin
A fraqueza dos reis

Certa vez, Nasrudin foi à Corte usando um magnífico turbante. A intenção do Mullá era despertar o desejo do rei e vender-lhe o turbante. E de acordo com sua expectativa, o rei perguntou:
- Nasrudin, quando você pagou por esta maravilha?

- Mil moedas de ouro, majestade.

O vizir percebeu a espeteza e cochichou ao rei: "ninguém, além de um idiota, pagaria tanto por um turbante". O rei, influenciado pelo comentário, disse a Nasrudin:
- Por que você pagou tanto? Nunca ouvi falar que alguém tivesse dado essa quantia por um turbante.

- Paguei essa fortuna porque sabia que em todo o mundo só um rei compraria esse tipo de coisa.

Sensibilizado pelo elogio, o rei decidiu comprar o turbante pelas mil moedas de ouro.
Pouco depois, ao se encontrar só com o vizir, Nasrudin lhe disse:

- Você pode conhecer o valor de um turbante, mas sou eu quem conhece as fraquezas dos reis.

Rosita Flores contando Nasrudin
O Alfaiate desatento contada por Giba Pedrosa

"Era uma vez, a menos de mil quilômetros daqui, um alfaiate viúvo que vivia com a filha pequena... Apesar de ser um ótimo artesão, era uma pessoa que não prestava atenção em algumas coisas.
Assim, costumava sair à rua com a mesma roupa velha, todas esfarrapadas, que usava o dia in­teiro dentro de casa.
Os comentários se espalhavam, e ninguém mais encomendava roupas para o alfaiate, que foi ficando pobre. Um dia, sua filha disse: "Pai, não temos quase nada para comer. O senhor precisa fazer alguma coisa, senão vamos morrer de fome".
O alfaiate foi até' o sótão da casa, onde fazia muito tempo guardava coisas que considerava sem utilidade. Ao remexer nas pilhas empoeiradas, descobriu que entre elas havia objetos de valor. Ele nem se lembrava mais quando os tinha posto ali, nem por quê. Juntou uma porção desses objetos num carrinho e foi vendê-los no mercado da cidade. Com o dinheiro que recebeu, comprou comidas deliciosas para ele e para sua filha.
No caminho de volta para casa ele viu, pendurado na porta de uma tenda, um tecido magnífico, como nunca ti­nha visto. Era inteiro bordado com fios de todas as cores do arco-íris, formando várias figuras distintas. Nele também havia padrões ornamentais com fios de ouro e prata entrelaçados que brilhavam à luz do sol. O alfaiate, maravilhado, resolveu comprar aquele tecido com o dinheiro que havia sobrado.
Assim que chegou em casa, esticou o tecido sobre a mesa, pensou um pouco, e depois cortou e costurou um belíssimo manto que quase arrastava no chão.
Quando saiu à rua com aquele manto, as pessoas o rodearam e perguntaram:
- Onde foi que você comprou este manto? No Orien­te, na ilha de Java?
- Não - respondeu o alfaiate. - Eu mesmo o fiz.
- Então, nós também queremos um manto lindo como este.
E foram levar tecidos para ele, formando uma fila à porta de sua casa. Eram tantas pessoas, e tantos mantos eles fez, que acabou ficando rico.Mas ele era uma pessoa que não prestava atenção em algumas coisas. Ele não tirava seu manto: costurava com ele, fazia comida, cuidava do jardim. Passou-se muito, muito tempo. O manto ficou velho e estragado. As pessoas, vendo-o tão mal vestido na rua, começaram a achar que ele não devia ser um bom profis­sional. E deixaram de fazer encomendas. E ele ficou pobre outra vez.
Certo dia, não tendo nada para fazer, o alfaiate ficou observando o manto e descobriu que ainda havia um pedaço do tecido que não estava estragado. Pôs o manto sobre a mesa, cortou as partes rasgadas, desmanchou as cos­turas, pensou um pouco e fez um lindo casaco, com uma gola enorme.
Quando saiu com o casaco, as pessoas queriam saber: 
- Onde foi que você comprou este casaco? Na Aus­trália, no pólo norte?
- Não, eu mesmo o fiz.
E foram tantas encomendas de casacos, que o alfaiate ficou rico outra vez.Mas continuava sendo aquele homem que não prestava atenção em algumas coisas. A qualquer tipo de comemo­ração - casamento, batizado, enterro, festa de aniversário -lá ia ele com o casaco. Passou-se muito, muito tempo. E o casaco ficou todo esburacado, cheio de manchas. Ninguém mais fazia en­comendas. Ele ficou pobre
Ele ficou pobre. Percebendo que o casaco ainda tinha um pedaço bom de tecido, o alfaiate o desmanchou e fez um colete tão lindo que todos na rua lhe perguntavam:
- Onde foi que você comprou este colete? No Afe­ganistão? Na Terra do Fogo?
- Não, eu mesmo o fiz.
E com tantas encomendas de coletes, o alfaiate ficou rico. Mas, não sei se já lhes contei, ele era uma pessoa que não prestava atenção em algumas coisas. Não tirava o colete para nada, nem mesmo para tomar banho.
Passou-se muito, muito tempo. E o colete ficou em petição de miséria. Pobre mais uma vez, o alfaiate aproveitou o pequeno pedaço de tecido do colete que ainda estava per­feito e sabem o que ele fez? Uma gravata-borboleta. Mas não era uma gravata qualquer. Era tão linda e brilhava tanto, que todos queriam gravatas como aquela.
Depois de muito trabalhar, ele acabou ficando rico. E não deixava de ser aquela pessoa que Não P... A... em A ... Coisas. Nem para dormir ele tirava a gravata.
Passou-se muito, muito tempo. E a gravata ficou torta, ensebada, irreconhecível. O alfaiate ficou pobre mais uma vez, já que ninguém mais lhe fez encomendas.
(Não se preocupem, o conto já está chegando ao fim.)
O alfaiate ainda descobriu na gravata um pedacinho de tecido que podia servir para alguma coisa. E então fez um superutrabelíssimo botão, bem redondo, que costurou na sua roupa velha, no meio do peito. Ninguém notava os farrapos que ele vestia; o botão era tão brilhante e magnífico que todos queriam botões como aquele. E tantos ele fez, que ficou rico.
Mas continuava sendo aquela pessoa que N  Prestava A em  A  C. Por muito, muito tempo. E ele foi pobre.
Desmanchou o botão e ainda sobrou um pedacinho de tecido bem pequenininho, que conservava intactos alguns padrões de fios dourados e prateados, entremeados com to­das as cores do arco-íris, que brilhavam intensamente.
O que o alfaiate fez com aquele pedaço minúsculo que sobrou do magnífico tecido?"

Giba Pedrosa - Contos Árabes CCSP



Giba Santana e Joca na plateia


Tarde muito gostosa e cheia de aprendizados. Obrigada Giba Pedrosa!




Um grande abraço em todos vocês. Espero vê-los no final de semana, no CCSP! Até lá!

Rosita Flores

quarta-feira, 12 de março de 2014

Uma lenda cigana sobre o arco íris


Em tempos remotos os ciganos foram perseguidos e massacrados em todo o mundo. 
O seu desespero era grande, pois eles odiavam guerras, e em vez de armas preferiam transportar o seus violinos, dançar e cantar alegres canções.
 Era  enorme o seu desejo de liberdade, por isso os ciganos eram nomades.

Cansada de fugir e chorar as perdas de parentes e amigos, uma bela cigana, grávida, ao ver o arco-íris, invocou-o, pedindo salvação para o seu povo. Fê-lo com toda a devoção e fervor, pensando no filho que carregava no ventre, e que, em breve, iria nascer no meio de toda aquela violência e miséria. 
A mulher, ajoelhada e chorando copiosamente, esperava uma resposta do arco-íris, quando se apercebeu que as cores que ela fitava começavam a brilhar com mais intensidade, alternando-se rapidamente.
 
Limpou as lágrimas, pensando estar a imaginar fantasias; mas, mais serena, verificou que não era fantasia, as cores estavam mesmo a alternar-se, como se fossem pequenos sinos emitindo sons divinos.
 
Sentiu dentro de si uma enorme paz; segurou com as mãos o ventre que guardava o filho, e rogou ao arco-íris que acabasse com a situação do seu povo.

De súbito ouviu uma voz emanando das cores do arco-íris dizendo-lhe para ter calma, e garantindo-lhe que não perderia o filho que ela guardava no seu ventre como um tesouro. A voz acrescentou: 
“Essa criança fará com que as minhas cores ganhem vida nas suas mãos e receberá, para si e todas as gerações vindouras, muitas moedas de ouro, pois vou lhe oferecer o pote encantado que trago comigo, assim como toda a sua magia.

Com o verde ele levará a esperança e a fartura; com o vermelho, a vida, o entusiasmo e o vigor; com o amarelo, a realeza e a riqueza; com o azul, a serenidade e a intuição; com o laranja, a energia, a vitalidade e a emotividade; com o violeta levará a transmutação e a perseverança; com o rosa o amor, a beleza, a moralidade e a música”.

A lenda cigana espalhou-se pelo mundo, levada pelo encanto das roupas coloridas desse povo, pela magia das suas danças, pela sua atração pelo ouro e pela crença de que existe um pote de ouro inesgotável para além do arco-íris.

segunda-feira, 10 de março de 2014

O silêncio que grita em mim

Até meados de 2009 eu morava em Poços de Caldas, num bairro mais ou menos afastado do centro (não para quem tem as referências de São Paulo) onde tudo era uma grande fazenda antes de virar o Jardim das Azaleias. Quando arrumei minha casinha ali, eu constantemente ouvia o silêncio que era quebrado, vez ou outra, pelo ruído de vacas e cavalos descendo ou subindo a rua ou ainda, fuçando em alguma coisa perto do meu portão. Era engraçado e de uma beleza extremamente prosaica, ali naquele lugar, aquele tipo de coisa. Eu morava sozinha e, no quarteirão só tinham mais quatro casas, das quais, três eram habitadas. Em frente de casa tinha um terrenão grande e ao redor podiam-se ver muitos outros terrenos e casas em construção. Eu costumava levar minhas cachorras todas as noites para passear por aqueles quarteirões cheios de vazios e de silêncios. A noite só um friozinho sempre nos acompanhava. Para quem conhece Poços de Caldas sabe do que eu estou falando. Foram seis anos vivendo com o silêncio do Jardim das Azaleias, mas sem eu ter a dimensão disto. Voltei para São Paulo, sim sou paulistana, e vim morar num bairro da zona leste (região mais povoada e populosa) e o silêncio, para mim, ficou perdido no sul de Minas Gerais. Com ele também ficou parte da minha capacidade de ouvir com orelhas largas e olhar comprido. E isso aconteceu porque ouço o tempo todo: gente gritando na rua, carros com aparelhagem de som que chega a fazer tremer minhas janelas e meus pensamentos, carros de som anunciando alguma coisa, motos, ônibus e caminhões que desfilam sem parar bem em frente à minha casa. Os ruídos todos desta cidade grande encobrem qualquer possibilidade de se escutar o silêncio e qualquer outra coisa. O barulho todo entra em mim, me irrita, me sufoca e me deixa surda. Para voltar a ouvir é preciso redescobrir o som do silêncio. Ah! Como eu quero isso. A necessidade de ouvir o silêncio é tão urgente e impositiva que eu até tenho acordado no meio da noite, quando as ruas já estão mais vazias e a maioria das casas adormecidas (quando não é final de semana) só para procurar o silêncio.  Tenho dificuldade mesmo de ouvir meu silêncio interior porque, para isso, é preciso ter a referência, vez ou outra, do silêncio exterior para que a alma se aquiete também.

A minha necessidade de encontrar o som do silêncio, e poder escutar a mim mesma e o outro, é tão grande e está tão orgânica que me levou hoje, sincronicamente, ao encontro com este belíssimo texto de Rubem Alves (meu quase vizinho em Minas - Rubem morava em Pocinhos do Rio Verde).

Boa leitura, com desejos de momentos de silêncio interior e exterior.

ESCUTATÓRIA
Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.
Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas – coitadinhas delas – entram e caem num mar de idéias. São misturadas nas palavras da filosofia que moram em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos, não são as árvores e as flores. Para ser ver é preciso que a cabeça esteja vazia.
Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos.(Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonita é a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...) Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma dela contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia – a enfermeira nunca acertava – dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim esperando, evidentemente, o aplauso, admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: "Mas isso não é nada..." A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.
Parafraseio o Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma." Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg – citado por Murilo Mendes: "Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas." Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...
Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante (não "evangélico"), foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório pra não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma.) Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essencais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado." Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou." Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou. E assim vai a reunião.
Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas outras pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui informado que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio dia e às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em "U" definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram. Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: "Meus irmãos, vamos cantar o hino..." Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. É música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós – como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a idéia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa – quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia que de tão linda nos faz chorar. Pra mim Deus é isso: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá tembém. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto...
(autoria de Rubem Alves, Correio Popular, 09/04/1999)

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Notícias de meu pai

Hoje meu telefone tocou cedo. Eu atendi ao pedido que me levou até o segundo andar do hospital - setor de hemodinâmica. Meu pai lá estava, numa maca, aguardando para fazer o tão temido cateterismo. No mesmo lugar, outras duas macas: senhor Edevaldo na primeira e na segunda a dona Cleusa. O senhor José Poiatto (meu pai) estava na maca do canto. Dois funcionários, o Rodrigo e um outro cujo nome não lembro, olhavam alguma coisa no computador.
Entrei, cumprimentei todos e fui conversar com meu pai. Mãos dadas com ele, palavras trocadas e então olhei ao redor: tensão no ar! Tensão gigante porque estava somada. Era a minha tensão, mais a tensão do sr. Edevaldo, mais a da dona Cleuza e a do meu pai. Acho que só os funcionários, já tão habituados com pacientes de avental verde deitados em maca aguardando cateterismo, que mantinham um certo ar de "não tenho nada com isso".

Foi então que eu levantei e perguntei: Posso contar uma história?
O Rodrigo deu de ombros. Meu pai me olhou orgulhoso e, nas duas outras macas, olhos brilhantes de sorrisos tímidos me encorajavam.
Comecei. Sinal de alguém pedindo para eu falar mais baixo. Ignorei. A história foi seguindo seu rumo próprio. Seis pares de olhos atentos acompanhavam. Ás vezes, apareciam outros pares de olhos, vindos de fora, que arriscavam um olhar furtivo. Outros apareciam e até se demoravam. Num momento da história a personagem canta "lavadeira, lavadeira, lava roupa bem lavada ô lavadeira". Em outros momentos, minha pequena e ilustre plateia participa e dá conselhos aos personagens. Finda a história e eu vejo sorrisos brotaram novamente. Lágrima em um par de olhos, também. Já não eram mais quatro desconhecidos naquela sala fria. A história contada permitiu aproximar as pessoas e suas histórias de vida. A prosa foi começando e todos conheceram um pouco da vida do outro; das famílias que esperavam, do time de futebol e puderam expressar como cada um estava sentindo a angústia de estar ali.
Rodrigo vem me avisar que preciso sair e esperar lá fora. Desejo boa sorte, aperto a mão de todos e saio. A espera é longa. Foram três longas horas até eu ouvir uma voz de cera: Acompanhante do sr. José Poiatto. Entro. Meu pai sentado. Médico se aproxima, e com um sorriso me diz: O exame foi ótimo. Pensamos que os vasos do coração estavam entupidos (SIC) mas tá tudo bem. Ótimo resultado, ele completou.

Fiquei mais um tempo com meu pai, ajudei-o com o almoço e, ao sair, pude ouvir o funcionário Rodrigo cantarolar: "Lavadeira, lavadeira..."


Ah! Meu pai teve alta hoje.

Eu desejo que meu pai tenha ainda muitas boas histórias para ouvir, viver e contar.

Eu desejo que todas as pessoas internadas em hospitais recebam o conforto e o alívio de histórias inspiradoras.

Abraços

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Loja de Cristais - Conto de Giovanna Artigiani

Talvez não seja muito simples de explicar as motivações que levam a nós vitrinistas, a buscar coisas das quais não temos referências com o objetivo que criar nos observadores uma vontade incontrolável de entrar em uma loja. Na minha rotina circular eu reservava tempo para inspirar-me no mundo e seguia assim, caminhando pela rua observando as pessoas e seus jeitos, as coisas e seus detalhes. Eu desempenho no mundo comercial o papel de cupido, buscando flechar pela cena apaixonante de uma vitrine o olhar do comprador. Dirão que não tenho uma missão muito nobre, que sou é uma enganadora que seduz para extirpar e usufruir. Mas não, a vitrine é uma promessa, se for montada de uma forma que abrace o provável comprador com um véu ela pode até mesmo unir duas pontas de corda: o desejo recém-nascido e a associação de felicidade que a vitrine propõe.


Imagem retirada do blog: http://claudeteedeca.blogspot.com.br/2011/12/o-natal-de-cristal-da-harrods.html

            Eu tinha em mente um projeto específico de uma loja de bolsas. Pensava em montar a vitrine com as bolsas semi-abertas exibindo cristais como se eles tivessem sido roubados. “Fui a uma festa e roubei essa taça”, “visitei tia Sophia e roubei esse vaso”. Mensagens escondidas e cifradas de aquisição não legítima de glamour, leveza e beleza. Como quem beija um homem que não é seu às escondidas, como quem quer vender refrigerante e fala de sorrisos, como quem quer vender cigarros e fala de aventuras, como quem quer vender sanduíches e fala de amor.
            Eu sabia onde deveria ir e entrei na galeria apertada e antiga, em direção à loja de cristais.
            Fui recebida na loja pelos olhos compreensivos do seu antigo dono. Haveria hoje peças novas? Com os óculos na ponta do nariz e a habilidade na ponta dos dedos, mostrava-me variados objetos de cristal. Olhava-o através das peças enquanto escutava sua voz pausada e descritiva de origens e funções. Eu separei algumas peças médias, sempre unitárias, nada aos pares. Ouvi o farfalhar dos cristais sendo abraçados em papel de seda e sendo colocados para dormir em suas caixas-berço de papelão. Aquele homem fazia o seu trabalho parecer o trabalho mais importante do mundo pelo tempo em que ele despendia no manuseio. Anotou o endereço da entrega em um papel amarelo-velho e me prometeu que no dia seguinte as peças de cristal acordariam o vigia da loja onde eu montaria a vitrine. Elas me dariam um beijo de bom dia e nós nos faríamos companhia, como velhos amigos que tem segredos em comum.

Giovanna Artigiani


quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O espantalho, conto do amigo, escritor e folclorista Valter Cassalho


Como conheci Valter Cassalho

Quando fui para Joanópolis pela primeira vez, já conhecia o livro Histórias do Arco da Velha, de autoria de Valter Cassalho e contava alguns dos causos que escritos ali. Por isso mesmo, mal cheguei na cidade e já fui perguntando do Valter para todo mundo. Eu queria muito conhecer de perto o autor de algumas das histórias que eu contava.
 Era dia de São João e a cidade toda estava festejando porque também é o aniversário da Capital do Lobisomem.  Para aqueles que ainda não sabem, Joanópolis foi por muito tempo conhecida como a Joia da Mantiqueira e depois recebeu a alcunha de Capital do Lobisomem. E assim também é conhecida até hoje.
Naquela noite de festejos não foi fácil achar o homem não. Quando falavam que o Valter estava num lugar, eu corria até lá e ele já tinha saído. Parecia caçada de gato e rato. Quando por fim, encontrei com ele, me deparei com uma pessoa muito amável, simpática, simples e extremamente solícito. Conversamos, ele me apresentou a Casa do Artesão, me presenteou com um saci feito pelo André e até anunciou no megafone da festa que, naquela noite, tinha uma contadora de histórias de São Paulo na cidade. Valter ficou satisfeito e alegre ao saber que eu contava seus causos. E eu fiquei mais ainda por ter recebido tal confiança. Depois de um tempo, ele generosamente me apresentou à professora e grande folclorista Neide Rodrigues e também me indicou para um trabalho com ela. Fui com Giba Santana conhecer a professora Neide que nos acolheu, muito hospitaleira, em seu delicioso sítio. Ensaiamos algumas horas com os músicos que compõem a orquestra de violeiros. Lembro com detalhes de como aconteceu tudo numa salinha da Ong Ora Viva São Gonçalo. Felicidade não cabia e eis que chegou o dia de contar os causos no Museu da Língua Portuguesa, num sábado de Virada Cultural em São Paulo. Neide Rodrigues e sua orquestra linda de violeiros foram costurando com as notas musicais as histórias, enquanto o Giba Santana pontuava sutilezas com sua mesa de objetos sonoros.
De lá para cá, eu e Valter tentamos também outros alinhavos para que eu fosse até Joanópolis contar histórias. Mas, isso ainda não aconteceu. Eu sinto que vai acontecer em breve. Oba!

Sou muito grata por ter conhecido a linda e encantadora Joanópolis, que é realmente, uma joia encrustada na Serra da Mantiqueira. Sou igualmente grata e me sinto honrada, por ter conhecido pessoas tão importantes para a cultura popular e que têm o compromisso com a sua valorização e difusão.

Alguns dias antes do último Natal, recebi um presente incrível do Valter Cassalho a dedicatória de seu causo O espantalho. Felicidade e alegria não couberam em mim.

Deixo aqui registrado este belo e interessantíssimo causo e logo depois segue o link para o blog do Valter onde você encontrará tantos outros causos e escritos interessantes e também divertidos.

O ESPANTALHO
À amiga Rosita Flores 

Hoje não muito usado em nossas plantações, mas num tempo antigo muito presente na roça, os espantalhos espalhavam-se por ai.  E num desses fundos de roça que ouvi o presente “causo”. 
Contam que por um desses cafundós morava um garboso rapaz, descendente dos antigos coronéis e pagava pose de sinhozinho. Filho de família antiga, gente de posses, o rapaz de nome Bento vivia de terninho branco engomado, bonito, simpático e o chamavam de Bentinho.  Morador da casa do grande de um bairro distante era desejado pelas moças casadoiras; porém naquele tempo, essas coisas de amor e paixão, de nada tinham valor, quem decidia com que se casava eram os pais. E assim Bentinho foi prometido em noivado a Jurema, uma bela e educada moça de dezesseis anos; combinado entre as famílias que ambos após o casamento morariam na cidade. 
O tal Bentinho desperta ciúmes dos rapazes e suspiros das moças que por ali passavam ou trabalhavam na fazenda. Eis que poucos dias antes do carnaval, realizou-se as núpcias do casal, com grande festa e alegrias dos pais, e muito ciúmes das mocinhas, em especial de Maria Rita, a bela morena de vinte anos e ainda solteira, que vivia a suspirar pelos cantos da casa e imaginar seu amor com Bentinho. Maria Rita nutria pelo belo moço um amor platônico e triste, vivia a espiar o moço de longe, seguindo-o mesmo em seus banhos de rio. Neste amor impossível recusou casamentos e noivados.
 Bem, mas voltemos a Bentinho. Passado o Carnaval veio a Quaresma, e os moços da fazenda, arteiros como eles só, resolveram dar uma peça no sinhozinho. Chegando a semana santa, roubaram alguma roupas do varal da casa grande e na quinta-feira santa, estavam todos num grande paiol fazendo os tradicionais judas. Fizeram o judas de uma fofoqueira da cidade nhá Bertina, do farmacêutico Leôncio Zeca, que era chato como ele só, do coronel e famoso mão-de-vaca Tico Preto e do engomadinho Bentinho, que ficou na estica de terno branco de linho, chapéu e tudo mais!  Ora,  Maria Rita era filha da nhá Tuca, lavadeira da Casa Grande e comentou o ocorrido do sumiço das roupas do rapaz. Desconfiada Maria Rita cismou algo, pois bem conhecia a esperteza dos meninos da fazenda nesta época de judas. Sorrateiramente na calada da noite  foi até o paiol e logo deu de cara como o judas de Bentinho, e mesmo como judas, bem atochado de capim ela ainda o achou bonito. Neste amor doentio, Maria Rita cheirou o  judas de Bentinho, abraçou o boneco e ficou a imaginar seu grande amor em seus braços.  Como era bem eleve, colocou o judas nas costas e levou na sua casa. Que coisa feia, pensou ela, roubando algo na Sexta-Feira Maior e tendo pensamentos tão mundanos num dia grande desses! Chegou em casa e colocou o boneco em sua cama e dormiu com ele ao seu lado.
Amanheceu o sábado de Aleluia e os bonecos foram para praça, onde foram surrados, enforcados e antes de serem queimados como manda a tradição, foi lido o testamento de Judas, com grande algazarra e risadas dos presentes. No entanto, os rapazes notaram a falta do judas de Bentinho, mas dado tanto farra e tantos judas deixaram de lado o furto do dia anterior.
Após alguns dias e passado o dia de judas, o jeito era dar um destino ao boneco antes que sua mãe se zangasse, a solução foi levar o judas para a roça e finca-lo na terra, ao menos serviria para alguma coisa e não teria o fim do fogo como os outros bonecos.  Apesar de muito repreendia por sua mãe, Maria Rita recusou-se a queimar o judas e todo dia que iam trabalhar na Casa Grande ela avistava o espantalho novo da plantação.
Assim passaram alguns dias e numa noites dessas de lua cheia, houve um baile no terreiro da Casa Grande, festança das boas, sanfoneiro e todo mundo a dançar. E não é que numa hora dessas chega um belo rapaz de terninho branco, chapéu e todo educado, com um sorriso malicioso e hipnotizante. Moço cheiroso, dançador e muito parecido com Bentinho, levando muitos a crer que era algum parente. Sempre desconversando quanto a parentela, só sabiam que era um “moço da cidade”.
Indo embora a certa hora, ainda cedo, mas num bom horário para donzelas, Maria Rita antes de entrar em sua casinha lá no meio do morro, percebeu que seu belo espantalho não estava mais lá, talvez tivesse caído num pé de vento que dera há algumas horas, ou que os moços o pegaram de volta para suas estrepolias.
Dormindo Maria Rita acordou assustada como a ouvir passos ao redor da casa, um barulho de palha a esfregar pela parede, levantou acendeu o lampião e nada viu, enfim adormeceu e sonhou com o belo rapaz do baile. Outro dia cedo ao olhar para plantação, lá estava ele, o espantalho, arrumadinho, bonito, bem alinhado.  Outra noite veio, e o tinhoso a solta, como a tentar as pessoas, Maria Rita deu de chofre com o rapaz na beira da sua casa, quis gritar mas não conseguiu, ficou petrificada pelo susto, e antes que tomasse qualquer atitude foi profundamente beijada pelo rapaz que vira no baile na Casa Grande. Assim sucederam-se esses encontros misteriosos, com o inebriante perfume e o olhar penetrador do rapaz, tão parecido e cheiroso como o grande amor de sua vida, o Bentinho, que agora morava distante dali.
Passaram-se os meses e lá estava o tal espantalho, fincado na terra e que levantava certa curiosidade, pois estava sempre limpo, impecável, conservado, nem o sol e chuva parecia corroer suas roupas ou o enchimento do seu corpo. E foi num desses comentários com as lavadeiras na beira do rio que a velha nhá Sunta, antiga parteira do local, comentou que isso era mau sinal. Que não era coisa que se prestasse fazer um judas e não queimá-lo, ainda mais na Sexta-feira Santa, dia muito grande; pior ainda, usar um judas amaldiçoado como espantalho, que isso poderia provocar o Tinhoso a fazer suas artes por ai.  Cruz Credo !! Todos se benzeram após a fala de nhá Sunta.
Assim correram mais umas semanas, e os encontros furtivos com o “moço da cidade” continuaram, mas agora já dava para perceber algo ! A barriga de Maria Rita estava a crescer e precisou contar a sua mãe, que havia perdido sua virgindade, desonrada a família, com um moço que sequer sabia o nome.  Mãe e filha tentaram esconder por uns meses; proibindo Maria Rita de sair de casa e muitos perceberam a ausência da bela morena, nos bailes, festas e rezas. Assim correu o ano, novas festas, o carnaval e a quaresma de novo e lá estava o espantalho de Bentinho, limpo, alinhado, cheiroso no meio da plantação. Plantaram o milho, o feijão, a abóbora,  que brotaram, cresceram, secaram e o espantalho lá, tão novo como no primeiro dia.
Finda a Quaresma, chegou novamente a semana santa, a barriga de Maria Rita enorme, e o “moço da cidade” perambulando nos bailes do bairro, galanteando as moças, sempre de terno de linho branco, chapéu na cabeça e cheiroso, que aparecia e sumia como por encanto, deixando moças suspirando por aí.  Maria Rita as vezes ainda recebia a visita do seu falso Bentinho, de poucas palavras e muitas malícias.
Enfim chegou a sexta-feira santa, e os moços resolveram fazer novos judas, e foi numa dessas que alguém teve a ideia de pegar o espantalho na velha plantação de milho e devolve-lo a condição de judas e finalmente dar cabo no dito cujo. E lá foram dois rapazes na plantação, na sexta-feira santa, e tentaram, tentaram e tentaram e não conseguiram mover o espantalho fincado na terra. Chamaram mais dois fortes rapazes e nada, resolveram cavar ao redor, e depois de muito esforço conseguiram derrubar o boneco que passou a exalar um cheiro fétido de coisa podre e enxofre. Ficaram meio assustados com isso e procuraram os conselhos de nhá Sunta, que fez uma oração forte sobre o boneco e despejou pinga com arruda sobre o mesmo e atou as mãos do boneco com folha de palma benta.  Levaram então para a cidade e penduraram no poste em frente a Igreja do Arcanjo Miguel.
Desde esse momento Maria Rita entrou em grande tribulação, começaram as dores do parto que vararam a noite e duas parteiras presentes nada resolviam. Amanheceu o sábado de Aleluia e Maria Rita estava um tanto mais calma com poucas contrações. As dez horas na praça da cidade começaram a leitura dos testamentos dos judas, e a criançada começou a descer o pau nos vários bonecos, em especial no espantalho que de uma hora para outra ficou amarelo e envelhecido com forte cheiro de coisa velha. Maria Rita entrou outra vez nas contrações do parto, rolava de dores, gritava, suplicava e nada da criança nascer. Começaram várias orações no quarto; enquanto isso na cidade pauladas no judas e enfim atearam fogo, o boneco estrebuchou na forca, incendiou, balançou, girou e booom !!! Deu um grande estouro e todos ouviram uma gargalhada.  Arrepiados todos se benzeram com o sinal da cruz, mas só restou cinzas do antigo boneco de Bentinho.

Nesta mesma hora Maria Rita deu a luz uma criança branca como um sabugo de milho, os cabelos espetados e avermelhados como de uma espiga, olhos grandes e fogosos, que logo foi entregue a avó, pois Maria Rita estava desfalecida pelo difícil parto.  Dias depois refeita e com sua criança nos braços, Maria Rita soube do fim dado ao seu espantalho. Coincidência ou não, o tal “moço da cidade” sumiu das festas, dos bailes e do bairro.
Maria Rita, também sumiu da vida social, ficando somente com seu filho de cabelos vermelhos e branquelo como sabugo, apenas ouvindo nas noites enluaradas o barulho do raspar de palha de milho nas paredes de sua casa. 
Assim foi....
Valter Cassalho - Dezembro/2013

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