segunda-feira, 17 de março de 2014

Apresentação de Giba Pedrosa no Centro Cultural São Paulo

Os Gibas (Santana e Pedrosa e eu)
O contador de histórias Giba Pedrosa no V Festival Sul Americano de Cultura Árabe

O grande contador de histórias, Giba Pedrosa esteve presente no Centro Cultural de São Paulo nos dois primeiros finais de semana de março, integrando as atividades do Festival Sul America no Cultura Árabe (http://festivaldaculturaarabe.wordpress.com/) e contando muitas e divertidas histórias.


Giba Pedrosa - Contos Árabes CCSP
Foi muito gostoso assistir sua apresentação neste último domingo. Giba Pedrosa é um grande mestre não só conta admiravelmente histórias de tudo quanto é tipo, como também usa as brincadeiras de palavras, piadas e adivinhas permitindo que o público interaja e participe de forma muito divertida.

Giba Pedrosa, Joca e o Pato 
O domingo de contos árabes teve a presença forte dos contos de Nasrudin além de histórias com animais, sultão, princesas e até um alfaiate (O alfaiate desatento - in O violino cigano, histórias da tradição oral por Regina Machado, 2007) que na voz de Giba Pedrosa ganham um encanto sui generis

Fiquei muito grata e feliz por Giba me convidar ao final, gentilmente, para contar uma história de Nasrudin. 

Como se diz: Quem foi, foi e quem não foi, perdeu. Para deixar quem não foi com água na boca e quem foi com uma lembrança viva eu os presenteio com algumas fotos (desculpem-me pela falta de qualidade das imagens) e duas histórias. Aproveitem!

Ah! E não deixem de ir nos próximos finais de semana de março ouvir histórias com a gente da Cia Duo Encantado. 



Rosita Flores contando Nasrudin
A fraqueza dos reis

Certa vez, Nasrudin foi à Corte usando um magnífico turbante. A intenção do Mullá era despertar o desejo do rei e vender-lhe o turbante. E de acordo com sua expectativa, o rei perguntou:
- Nasrudin, quando você pagou por esta maravilha?

- Mil moedas de ouro, majestade.

O vizir percebeu a espeteza e cochichou ao rei: "ninguém, além de um idiota, pagaria tanto por um turbante". O rei, influenciado pelo comentário, disse a Nasrudin:
- Por que você pagou tanto? Nunca ouvi falar que alguém tivesse dado essa quantia por um turbante.

- Paguei essa fortuna porque sabia que em todo o mundo só um rei compraria esse tipo de coisa.

Sensibilizado pelo elogio, o rei decidiu comprar o turbante pelas mil moedas de ouro.
Pouco depois, ao se encontrar só com o vizir, Nasrudin lhe disse:

- Você pode conhecer o valor de um turbante, mas sou eu quem conhece as fraquezas dos reis.

Rosita Flores contando Nasrudin
O Alfaiate desatento contada por Giba Pedrosa

"Era uma vez, a menos de mil quilômetros daqui, um alfaiate viúvo que vivia com a filha pequena... Apesar de ser um ótimo artesão, era uma pessoa que não prestava atenção em algumas coisas.
Assim, costumava sair à rua com a mesma roupa velha, todas esfarrapadas, que usava o dia in­teiro dentro de casa.
Os comentários se espalhavam, e ninguém mais encomendava roupas para o alfaiate, que foi ficando pobre. Um dia, sua filha disse: "Pai, não temos quase nada para comer. O senhor precisa fazer alguma coisa, senão vamos morrer de fome".
O alfaiate foi até' o sótão da casa, onde fazia muito tempo guardava coisas que considerava sem utilidade. Ao remexer nas pilhas empoeiradas, descobriu que entre elas havia objetos de valor. Ele nem se lembrava mais quando os tinha posto ali, nem por quê. Juntou uma porção desses objetos num carrinho e foi vendê-los no mercado da cidade. Com o dinheiro que recebeu, comprou comidas deliciosas para ele e para sua filha.
No caminho de volta para casa ele viu, pendurado na porta de uma tenda, um tecido magnífico, como nunca ti­nha visto. Era inteiro bordado com fios de todas as cores do arco-íris, formando várias figuras distintas. Nele também havia padrões ornamentais com fios de ouro e prata entrelaçados que brilhavam à luz do sol. O alfaiate, maravilhado, resolveu comprar aquele tecido com o dinheiro que havia sobrado.
Assim que chegou em casa, esticou o tecido sobre a mesa, pensou um pouco, e depois cortou e costurou um belíssimo manto que quase arrastava no chão.
Quando saiu à rua com aquele manto, as pessoas o rodearam e perguntaram:
- Onde foi que você comprou este manto? No Orien­te, na ilha de Java?
- Não - respondeu o alfaiate. - Eu mesmo o fiz.
- Então, nós também queremos um manto lindo como este.
E foram levar tecidos para ele, formando uma fila à porta de sua casa. Eram tantas pessoas, e tantos mantos eles fez, que acabou ficando rico.Mas ele era uma pessoa que não prestava atenção em algumas coisas. Ele não tirava seu manto: costurava com ele, fazia comida, cuidava do jardim. Passou-se muito, muito tempo. O manto ficou velho e estragado. As pessoas, vendo-o tão mal vestido na rua, começaram a achar que ele não devia ser um bom profis­sional. E deixaram de fazer encomendas. E ele ficou pobre outra vez.
Certo dia, não tendo nada para fazer, o alfaiate ficou observando o manto e descobriu que ainda havia um pedaço do tecido que não estava estragado. Pôs o manto sobre a mesa, cortou as partes rasgadas, desmanchou as cos­turas, pensou um pouco e fez um lindo casaco, com uma gola enorme.
Quando saiu com o casaco, as pessoas queriam saber: 
- Onde foi que você comprou este casaco? Na Aus­trália, no pólo norte?
- Não, eu mesmo o fiz.
E foram tantas encomendas de casacos, que o alfaiate ficou rico outra vez.Mas continuava sendo aquele homem que não prestava atenção em algumas coisas. A qualquer tipo de comemo­ração - casamento, batizado, enterro, festa de aniversário -lá ia ele com o casaco. Passou-se muito, muito tempo. E o casaco ficou todo esburacado, cheio de manchas. Ninguém mais fazia en­comendas. Ele ficou pobre
Ele ficou pobre. Percebendo que o casaco ainda tinha um pedaço bom de tecido, o alfaiate o desmanchou e fez um colete tão lindo que todos na rua lhe perguntavam:
- Onde foi que você comprou este colete? No Afe­ganistão? Na Terra do Fogo?
- Não, eu mesmo o fiz.
E com tantas encomendas de coletes, o alfaiate ficou rico. Mas, não sei se já lhes contei, ele era uma pessoa que não prestava atenção em algumas coisas. Não tirava o colete para nada, nem mesmo para tomar banho.
Passou-se muito, muito tempo. E o colete ficou em petição de miséria. Pobre mais uma vez, o alfaiate aproveitou o pequeno pedaço de tecido do colete que ainda estava per­feito e sabem o que ele fez? Uma gravata-borboleta. Mas não era uma gravata qualquer. Era tão linda e brilhava tanto, que todos queriam gravatas como aquela.
Depois de muito trabalhar, ele acabou ficando rico. E não deixava de ser aquela pessoa que Não P... A... em A ... Coisas. Nem para dormir ele tirava a gravata.
Passou-se muito, muito tempo. E a gravata ficou torta, ensebada, irreconhecível. O alfaiate ficou pobre mais uma vez, já que ninguém mais lhe fez encomendas.
(Não se preocupem, o conto já está chegando ao fim.)
O alfaiate ainda descobriu na gravata um pedacinho de tecido que podia servir para alguma coisa. E então fez um superutrabelíssimo botão, bem redondo, que costurou na sua roupa velha, no meio do peito. Ninguém notava os farrapos que ele vestia; o botão era tão brilhante e magnífico que todos queriam botões como aquele. E tantos ele fez, que ficou rico.
Mas continuava sendo aquela pessoa que N  Prestava A em  A  C. Por muito, muito tempo. E ele foi pobre.
Desmanchou o botão e ainda sobrou um pedacinho de tecido bem pequenininho, que conservava intactos alguns padrões de fios dourados e prateados, entremeados com to­das as cores do arco-íris, que brilhavam intensamente.
O que o alfaiate fez com aquele pedaço minúsculo que sobrou do magnífico tecido?"

Giba Pedrosa - Contos Árabes CCSP



Giba Santana e Joca na plateia


Tarde muito gostosa e cheia de aprendizados. Obrigada Giba Pedrosa!




Um grande abraço em todos vocês. Espero vê-los no final de semana, no CCSP! Até lá!

Rosita Flores

quarta-feira, 12 de março de 2014

Uma lenda cigana sobre o arco íris


Em tempos remotos os ciganos foram perseguidos e massacrados em todo o mundo. 
O seu desespero era grande, pois eles odiavam guerras, e em vez de armas preferiam transportar o seus violinos, dançar e cantar alegres canções.
 Era  enorme o seu desejo de liberdade, por isso os ciganos eram nomades.

Cansada de fugir e chorar as perdas de parentes e amigos, uma bela cigana, grávida, ao ver o arco-íris, invocou-o, pedindo salvação para o seu povo. Fê-lo com toda a devoção e fervor, pensando no filho que carregava no ventre, e que, em breve, iria nascer no meio de toda aquela violência e miséria. 
A mulher, ajoelhada e chorando copiosamente, esperava uma resposta do arco-íris, quando se apercebeu que as cores que ela fitava começavam a brilhar com mais intensidade, alternando-se rapidamente.
 
Limpou as lágrimas, pensando estar a imaginar fantasias; mas, mais serena, verificou que não era fantasia, as cores estavam mesmo a alternar-se, como se fossem pequenos sinos emitindo sons divinos.
 
Sentiu dentro de si uma enorme paz; segurou com as mãos o ventre que guardava o filho, e rogou ao arco-íris que acabasse com a situação do seu povo.

De súbito ouviu uma voz emanando das cores do arco-íris dizendo-lhe para ter calma, e garantindo-lhe que não perderia o filho que ela guardava no seu ventre como um tesouro. A voz acrescentou: 
“Essa criança fará com que as minhas cores ganhem vida nas suas mãos e receberá, para si e todas as gerações vindouras, muitas moedas de ouro, pois vou lhe oferecer o pote encantado que trago comigo, assim como toda a sua magia.

Com o verde ele levará a esperança e a fartura; com o vermelho, a vida, o entusiasmo e o vigor; com o amarelo, a realeza e a riqueza; com o azul, a serenidade e a intuição; com o laranja, a energia, a vitalidade e a emotividade; com o violeta levará a transmutação e a perseverança; com o rosa o amor, a beleza, a moralidade e a música”.

A lenda cigana espalhou-se pelo mundo, levada pelo encanto das roupas coloridas desse povo, pela magia das suas danças, pela sua atração pelo ouro e pela crença de que existe um pote de ouro inesgotável para além do arco-íris.

segunda-feira, 10 de março de 2014

O silêncio que grita em mim

Até meados de 2009 eu morava em Poços de Caldas, num bairro mais ou menos afastado do centro (não para quem tem as referências de São Paulo) onde tudo era uma grande fazenda antes de virar o Jardim das Azaleias. Quando arrumei minha casinha ali, eu constantemente ouvia o silêncio que era quebrado, vez ou outra, pelo ruído de vacas e cavalos descendo ou subindo a rua ou ainda, fuçando em alguma coisa perto do meu portão. Era engraçado e de uma beleza extremamente prosaica, ali naquele lugar, aquele tipo de coisa. Eu morava sozinha e, no quarteirão só tinham mais quatro casas, das quais, três eram habitadas. Em frente de casa tinha um terrenão grande e ao redor podiam-se ver muitos outros terrenos e casas em construção. Eu costumava levar minhas cachorras todas as noites para passear por aqueles quarteirões cheios de vazios e de silêncios. A noite só um friozinho sempre nos acompanhava. Para quem conhece Poços de Caldas sabe do que eu estou falando. Foram seis anos vivendo com o silêncio do Jardim das Azaleias, mas sem eu ter a dimensão disto. Voltei para São Paulo, sim sou paulistana, e vim morar num bairro da zona leste (região mais povoada e populosa) e o silêncio, para mim, ficou perdido no sul de Minas Gerais. Com ele também ficou parte da minha capacidade de ouvir com orelhas largas e olhar comprido. E isso aconteceu porque ouço o tempo todo: gente gritando na rua, carros com aparelhagem de som que chega a fazer tremer minhas janelas e meus pensamentos, carros de som anunciando alguma coisa, motos, ônibus e caminhões que desfilam sem parar bem em frente à minha casa. Os ruídos todos desta cidade grande encobrem qualquer possibilidade de se escutar o silêncio e qualquer outra coisa. O barulho todo entra em mim, me irrita, me sufoca e me deixa surda. Para voltar a ouvir é preciso redescobrir o som do silêncio. Ah! Como eu quero isso. A necessidade de ouvir o silêncio é tão urgente e impositiva que eu até tenho acordado no meio da noite, quando as ruas já estão mais vazias e a maioria das casas adormecidas (quando não é final de semana) só para procurar o silêncio.  Tenho dificuldade mesmo de ouvir meu silêncio interior porque, para isso, é preciso ter a referência, vez ou outra, do silêncio exterior para que a alma se aquiete também.

A minha necessidade de encontrar o som do silêncio, e poder escutar a mim mesma e o outro, é tão grande e está tão orgânica que me levou hoje, sincronicamente, ao encontro com este belíssimo texto de Rubem Alves (meu quase vizinho em Minas - Rubem morava em Pocinhos do Rio Verde).

Boa leitura, com desejos de momentos de silêncio interior e exterior.

ESCUTATÓRIA
Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.
Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas – coitadinhas delas – entram e caem num mar de idéias. São misturadas nas palavras da filosofia que moram em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos, não são as árvores e as flores. Para ser ver é preciso que a cabeça esteja vazia.
Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos.(Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonita é a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...) Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma dela contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia – a enfermeira nunca acertava – dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim esperando, evidentemente, o aplauso, admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: "Mas isso não é nada..." A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.
Parafraseio o Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma." Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg – citado por Murilo Mendes: "Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas." Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...
Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante (não "evangélico"), foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório pra não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma.) Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essencais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado." Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou." Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou. E assim vai a reunião.
Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas outras pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui informado que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio dia e às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em "U" definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram. Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: "Meus irmãos, vamos cantar o hino..." Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. É música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós – como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a idéia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa – quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia que de tão linda nos faz chorar. Pra mim Deus é isso: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá tembém. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto...
(autoria de Rubem Alves, Correio Popular, 09/04/1999)