quinta-feira, 23 de maio de 2013

O desenho daquele menino



"O importante não é a casa onde moramos. 
Mas onde em nós, a casa mora."
Avô Mariano (do livro Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra de Mia Couto, Ed. Cia das Letras)

No sábado contei histórias na Biblioteca de São Paulo e foi muito especial!

Eu me diverti com as crianças que estavam muito atentas e participativas. Senti muita receptividade e cumplicidade entre os presentes.
Ao final, no momento em que eu já estava guardando minhas coisas, veio um menino até mim e mostrou um desenho. Ele disse: "Olha o desenho que eu fiz, tia."



No desenho dele tinha um sol entre nuvens, um homem e uma mulher com mãos que quase se tocavam.

Eu elogiei o desenho e perguntei quem eram aquelas pessoas. O menino respondeu: "Meu pai e minha mãe."
Eu perguntei se os pais estavam com ele e então, o garoto disse que só o pai, a mãe não morava ali.

Ficamos conversando por um tempo e eu quis saber porque ele próprio não estava no desenho e a resposta foi, com olhos baixos e voz triste: "Ah! Eu esqueci...Tem também meu irmão que eu esqueci".

Ele tinha feito o desenho para dar de presente ao pai.
Perguntei se ele não queria se desenhar ali e o irmão também, e ele disse que o faria. Pegou o desenho decidido e se foi.

Eu também fui. Levei minhas coisas até o camarim, troquei de roupa, bebi água e quando já estava indo embora, senti um aperto no coração, uma vontade de voltar para ver o desenho daquele menino.Como se eu precisasse disso para sentir que não o havia abandonado (ou me abandonado?).

Entrei novamente na biblioteca e o procurei. Meus olhos o encontraram desenhando. Ele estava sentado numa pequena mesa junto com outras crianças que também desenhavam. Quando chamei por ele que me olhou com olhos brilhantes. Bem, assim foi que eu percebi ou talvez tenham sido os meus olhos que brilharam para ele - nele - com ele.

Ele já havia entregado o desenho ao pai. Pedi para ver e ele foi me guiando pelo corredor da biblioteca até onde se achava seu pai. O corredor era estreito e pequeno. No caminho ficamos lado a lado sem dizer palavra, só expectativa.
Chegamos.  O pai usava um computador da biblioteca e foi logo se desculpando, porque o filho é que tinha que usar.  Porém, o pai se acalmou quando percebeu que eu tinha ido até lá para ver o desenho do menino.

O pai puxou aquele papel sulfite e retirou-o debaixo de algo. Eu não prestei atenção no "algo". Eu queria ver o desenho. Agora eu tinha o desenho do menino nas mãos: um sol entre nuvens, um homem e uma mulher de mãos que quase se tocavam e dois meninos no canto direito. Os irmãos estavam num canto bem separados dos pais. Entretanto, muito próximos um do outro, naquele canto à direita do papel sulfite quase se fundiam num único menino.

Fiquei ali sem saber o que silenciar ou o que pronunciar. As palavras escorreram pelo chão, se esconderam nos livros daquela biblioteca, se trancaram em pensamentos. E porque eu não tinha mais palavra alguma, fiquei ali olhando o desenho, o pai estava em pé, mãos nos bolsos, querendo que aquela situação acabasse. Sorria amarelado e sem graça.

Eu me despedi do pai olhando para o desenho do menino, para o menino que eu via no desenho e para a lembrança que eu tinha do menino.

Naquela tarde eu contei histórias de Wolf Erlbruch, duas delas foram: A grande questão e O pato, a morte e a tulipa.

Contar histórias é entrar em contato com o íntimo das pessoas. Por isso é tão transformador e profundamente perturbador.


Rosita Flores

4 comentários :

  1. A gente se emociona porque corre o risco de... Que bom ler tuas impressões das situações...

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  2. Minha amada amiga Giovanna, que bom ter você por aqui e poder dividir essas impressões com você.

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  3. Rosita, querida. Que experiência impactante. Sei bem o que é isso. Quando contamos histórias, falamos com a alma. E isso não se consegue esconder por muito tempo. Adorei seu texto e sua verdade ao contar sua experiência. beijo carinhoso.

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  4. Meu Deus ! O Universo todo numa folha de sulfite...Que maestria o seu contar Rosita... gratidão, gratidão, gratidão !

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